Wednesday, August 3, 2011

NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (12) - A vereação republicana da câmara de Lisboa (1908)

No último post escrevi sobre as eleições municipais de 1908, em Lisboa, e do significado político da vitória do Partido Republicano Português (PRP). Esta traduziu-se na eleição, pela primeira vez na história da câmara alfacinha, duma vereação constituída apenas por candidatos republicanos. Mas quem eram estes candidatos republicanos?

A lista da vereação republicana espelhava bem a base social de apoio do PRP, assente no pequeno comércio, na pequena indústria, no operariado, nas profissões liberais e intelectuais e na burocracia estatal. Encabeçada por essa figura de aristocrata de grande prestígio intelectual e moral que era Anselmo Braamcamp Freire, futuro presidente da Assembleia Nacional Constituinte e do Senado da República, na lista avultavam nomes como o do comerciante Francisco Grandella, do arquitecto Ventura Terra, do advogado Cunha e Costa, dos professores Miranda do Vale e Veríssimo de Almeida e do engenheiro civil e capitão do Exército Tomás Cabreira. Destes, Anselmo Braamcamp Freire, Francisco Grandella, Ventura Terra e Tomás Cabreira foram os que mais se destacaram na vereação.

Anselmo Braamcamp Freire, filiado no partido republicano desde 1907, assume a vice-presidência da câmara de Lisboa a 30 de Novembro de 1908. Até 1910 teve como principal preocupação sanear as finanças do município, aspecto que, na sua opinião, colocava Lisboa numa “situação vergonhosa, deprimente e vexatória de se ver perseguida pelos seus credores, enxovalhada nos tribunais”. A partir da revolução de 5 de Outubro de 1910 Braamcamp Freire ocupa a presidência da câmara, cargo que terá sido fulcral para a sua rápida ascensão política: é eleito deputado no ano seguinte, e, a 20 de Junho, presidente da Assembleia Nacional Constituinte.

Francisco Grandella, eleito pelo 3.º círculo de Lisboa, manteve-se na câmara até 16 de Maio de 1912, data em que pediu a resignação do mandato. Durante este período, Grandella conseguiu ver aprovadas várias propostas suas para o espaço público, com especial destaque para as relativas à limpeza urbana e segurança pública, à mendicidade, ao combate ao vandalismo, ao tratamento dos animais pelos cocheiros, à toponímia e à remodelação da Praça do Comércio. Empenhou-se ainda na realização das comemorações do primeiro aniversário da República. Francisco Grandella possuía do exercício de vereador republicano uma ideia de out-sider face ao que apelidava de “vereação aristocrática” e inoperante pelo tempo desperdiçado em assuntos que seriam da competência dos funcionários municipais, o que relegaria para segundo plano os temas essenciais e estratégicos.

Miguel Ventura Terra, eleito pelo 2.º círculo, manteve uma prestação longa e regular na câmara até 30 de Janeiro de 1913. Foi um dos defensores da necessidade de haver um plano geral para a cidade, para que esta não fosse vista de uma forma fragmentada. A visão geral da cidade, compartilhada por parte significativa dos eleitos, é o suporte para alguns projectos concretos que são lançados por Ventura Terra, como a sua tentativa para desbloquear o impasse das obras do Parque Eduardo VII, bem como de um conjunto vasto de propostas em diferentes áreas do quotidiano, com base numa visão estética e higienista da cidade, de influência externa, que evoluía desde o século XX noutros países europeus, designadamente na Alemanha, em França e Inglaterra.

Tomás Cabreira, eleito pelo 1.º círculo, destacou-se sobretudo pelas propostas que fez para a construção de bairros operários, de balneários públicos, e de um Museu Municipal Histórico, à semelhança do que existia no estrangeiro.

A acção destes republicanos à frente da câmara de Lisboa tornou-se, assim, num dos mais importantes instrumentos de propaganda do seu partido, enquanto símbolo bem visível do que poderia ser a administração da República no país.

PS. 1) Para saber mais sobre estas eleições, os seus resultados e significado político, Ver À Urna pela Lista Republicana de Lisboa! Centenário da Vereação Republicana em Lisboa. Catálogo da exposição. Lisboa: CML/DMC/GT - CMCR, 2009, 304 p.

PS. 2) A "galeria" que acompanha este texto foi publicada na Ilustração Portuguesa, N.º 142 (9 Nov. 1908), p. 649.

Thursday, July 28, 2011

NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (11) - As eleições municipais de 1908 em Lisboa...

Tratarei hoje aqui das eleições municipais de 1908, na cidade de Lisboa. E vou falar destas eleições porque elas foram de enorme importância política para os republicanos, como iremos ver.

O ano de 1908 foi marcado por uma grande agitação política. No centro dessa tempestade encontrava-se João Franco, o “ditador”, como era apelidado pelos republicanos. Uma das suas decisões mais contestadas foi o adiamento, sem prazo definido, das eleições dos corpos administrativos (câmaras municipais e juntas paroquiais). No entanto, esta medida revelou-se infrutífera: no Conselho de Estado que se reuniu, logo após o Regicídio, sob a liderança do jovem rei D. Manuel, o vigor de João Franco foi substituído por um “ministério de acalmação”, chefiado pelo almirante Ferreira do Amaral – uma solução de compromisso, envolvendo ministros independentes e afectos aos partidos tradicionais, regenerador e progressista.

Além de anular as medidas mais repressivas do governo franquista, Ferreira do Amaral preocupou-se em restabelecer a normalidade constitucional, tomando 3 importantes decisões:

1.ª Chamou ao poder local os eleitos que João Franco afastara;

2.ª Dissolveu as cortes que o “ditador” encerrara no início do seu ministério, convocando eleições legislativas para o dia 5 de Abril (onde os republicanos obtiveram a sua melhor representação de sempre, com 7 deputados, mais 3 do que nas últimas eleições legislativas, realizadas em Agosto de 1906);

3.ª Comprometeu-se a realizar eleições locais em Novembro de 1908, efectivamente marcadas a 3 de Outubro: as eleições das câmaras municipais para o primeiro domingo de Novembro e as das juntas paroquiais para o último domingo do mesmo mês.

Os partidos monárquicos decidiram não apresentar listas de candidatos às eleições municipais em Lisboa, procurando, com isso, desvalorizar a provável vitória republicana, e também convictos da ilegalidade do acto eleitoral. Naturalmente, esta decisão marcou as eleições e toda a campanha que as antecedeu. Para o PRP a “greve” dos monárquicos constituía “uma flagrante violação do escrutínio” já que, grosso modo, inviabilizava o sentido secreto do voto.

Apesar do ambiente adverso e dos riscos, quer o PRP quer os socialistas (estes, por necessidade de afirmação política, embora sem expectativas de vitória), apresentaram as suas listas de candidatos a 16 de Outubro, e, a partir daqui, a campanha lá foi animando as páginas dos jornais e os bairros de Lisboa.

Os republicanos propunham aos lisboetas “um balanço exacto da situação financeira do município”, a organização dum “plano completo de administração municipal” e, por último, a “simplificação dos serviços, a brevidade do expediente, a eliminação de todas as formalidades inúteis, o asseio, o conforto, a beleza e sobretudo (…) a preparação da infância e da adolescência para as responsabilidades e os benefícios do futuro município democrático e republicano dentro do Estado republicano e democrático” (sublinhado nosso).

A 1 de Novembro de 1908 realizou-se o acto eleitoral, e, como era previsível, os republicanos obtiveram uma vitória esmagadora em Lisboa. Com uma participação de 9321 eleitores (cerca de 24% dos recenseados) o candidato republicano mais votado recebeu 9136 votos. Da votação resultou a eleição da primeira vereação inteiramente republicana na Câmara Municipal de Lisboa.

Simbolicamente, a vitória dos republicanos representava um valor acrescentado, pois tratava-se da conquista da capital. Politicamente, constituía uma oportunidade única para os republicanos mostrarem o que valiam no microcosmo autárquico, na administração da respublica, ensaiando, na capital, um projecto político de governo de âmbito claramente nacional – objectivo último da aposta política republicana na câmara de Lisboa.

PS. 1) Para saber mais sobre estas eleições, os seus resultados e significado político, Ver À Urna pela Lista Republicana de Lisboa! Centenário da Vereação Republicana em Lisboa. Catálogo da exposição. Lisboa: CML/DMC/GT - CMCR, 2009, 304 p.

PS. 2) A imagem que acompanha este texto é uma reprodução do óleo sobre tela "O Sufrágio" (1913), do pintor José Veloso Salgado, Col. Museu da Cidade - alegoria destas eleições municipais.

Wednesday, July 6, 2011

NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (10) - O Modernismo Literário...

No último post desta série de “páginas” sobre a I República vimos como o modernismo rompeu com os padrões naturalistas que ainda predominavam nas artes plásticas após o 5 de Outubro de 1910. Mas a ruptura não foi apenas nas artes; ela dá-se igualmente nas letras, sobretudo com o futurismo. O seu mais consistente defensor foi Fernando Pessoa, então um obscuro poeta e escritor, agente comercial num escritório da baixa lisboeta, inventor nas horas livres de personalidades imaginárias, heterónimos a que dá a autoria de muitos dos seus trabalhos. Será ele a fazer durante a I República a apologia do futurismo na forma teórico-literária, nomeadamente com Álvaro de Campos.

Outro poeta que vai alinhar na defesa do futurismo é Mário de Sá Carneiro, que, ao contrário dos pintores, resolve suportar a guerra na mais cosmopolita das cidades, Paris. Com o dinheiro da família, financia em 1915 os dois únicos números da revista Opheu, a mais forte afirmação modernista nacional. Pessoa e Sá-Carneiro são os directores do número 2, onde se torna clara a opção futurista na glorificação de uma literatura inspirada no progresso tecnológico, na maquinaria, na velocidade ou mesmo nas perturbações psíquicas.

Não contam, porém, com a reacção conservadora nem com a indiferença nacional, contra as quais acabam por esbarrar. O principal protagonista dessa reacção será o escritor Júlio Dantas, que, na Ilustração Portuguesa, menosprezará a saída de Oprheu. A resposta aparece em 1916 na extrema violência verbal do Manifesto Anti-Dantas e por Extenso, de Almada Negreiros, a mais radical condenação do academismo estético-literário em Portugal.

Pouco depois, o mesmo Almada Negreiros e Santa-Rita anunciam a criação do Comité Futurista de Lisboa, e em 1917, Almada apresenta no Teatro República, na capital, com grande espalhafato, o seu Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX. Segue-se o número único de Portugal Futurista, glorificando Santa-Rita mas reproduzindo também obras de Amadeo de Souza Cardoso e um texto de Álvaro de Campos – Mandado de Despejo aos Mandarins da Europa – que constitui o sustentáculo literário do futurismo nacional.

Talvez mais por provocação que por convicção, as ideias políticas dos futuristas, que vão desde o ultramonaquismo e reaccionarismo ao integralismo lusitano, chocam com tudo o que a República defende. Talvez por isso, no fim do decénio, a vanguarda portuguesa encontra-se pulverizada, como se nunca existisse ou não passasse de um mero equívoco. Resta a voz solitária de Pessoa, ele que em 1918 dissera que toda esta geração modernista “nenhuma influência” teve na vida portuguesa – “porque não há vida portuguesa”.

PS. No cimo, capa da revista Orpheu, 1 (1915).

Wednesday, June 15, 2011

NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (9) - O Modernismo Artístico...

É pelo humor, pela caricatura e pela ilustração que o modernismo penetra em Portugal. O palco dessa primeira ruptura com os padrões naturalistas que ainda predominam após o 5 de Outubro de 1910, estéticas que o novo regime não questiona, são as exposições de humoristas realizadas em Lisboa, em 1912 e 1913.

Os jovens artistas, como Cristiano Cruz, Almada Negreiros, Jorge Barradas, Stuart Carvalhais, Emérico Nunes, Alfredo Cândido, Francisco Valença, Amarelhe e Rocha Vieira, trazem consigo um novo traço, mais estilizado, que integra muitas inovações pós-art nouveau, revelando pela primeira vez em Portugal as influências do modernismo artístico; mas trazem também consigo novas temáticas, que não o político, optando muitas vezes pela crítica de costumes sociais e pela ridicularização dos hábitos das classes médias e dos novos-ricos.

A segunda ruptura modernista dá-se com o regresso dos “parisienses”, como Eduardo Viana, Amadeo de Souza-Cardoso ou Guilherme Santa-Rita, obrigados pela Grande Guerra a regressar a Portugal. Eduardo Viana, com uma exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1914, evoca o abalo causado pela obra de Cézanne, de quem se mostra tributário, ao mesmo tempo que revela a influência da conversão cubista de Picasso e Braque, ainda a fazer estragos pela Europa.

Guilherme Santa-Rita, que se chama a si próprio Santa-Rita pintor, autoproclama-se ainda representante do futurismo para Portugal. Variante da renovação modernista, o futurismo glorifica uma arte inspirada no progresso tecnológico, na maquinaria, na velocidade e em tudo o que o senso estético até então condenava: as perturbações psíquicas, a perversão sexual ou a guerra, formas de atingir uma vivência que se crê total e superior.

Amadeo de Souza Cardoso é talvez o pintor que melhor incorpora o espírito do tempo, assimilando a explosão vanguardista em todo o seu ecletismo. Assumindo-se como “impressionista, cubista, futurista, abstraccionista, de tudo um pouco”, a sua obra atravessa todas essas escolas e outras não catalogadas. Sem disso ter consciência, o país acaba de receber o seu mais extraordinário criador plástico.

As ideias políticas dos modernistas e futuristas vão chocar com tudo o que a I República defende, o que dificulta a sua implantação e disseminação sólida. Mas é no meio das suas vicissitudes que o modernismo artístico português vai desaparecer, quase de forma tão fulminante como surgira. Primeiro, atingido pela tragédia: Santa-Rita e Amadeo morrem pela doença, em 1918; depois, bloqueado pela tradição: Cristiano Cruz, desiludido com o conservadorismo dominante, abandona a carreira artística e exila-se em África; Almada, decepcionado pelo imobilismo lusitano, parte para Paris; Viana, apesar do talento, confina o seu modernismo a limites figurativos.

No fim da década, a vanguarda portuguesa encontra-se pulverizada, como se nunca existisse ou não passasse de um mero equívoco.

PS. O retratado é Francisco Cardoso, num óleo sobre cartão de Amadeo de Souza Cardoso, c. 1912 (O original, de 35 x 27 cm, está no Museu Municipal Souza-Cardoso, em Amarante).

Thursday, June 9, 2011

Um Novo Ciclo na Política Portuguesa...

Com efeito, estas legislativas configuram um novo ciclo na vida política portuguesa. Portugal virou à direita, assim os jornais o estamparam nas suas primeiras páginas. Eu prefiro sustentar que Portugal se tornou menos “colectivista” e mais “individualista”, ideologicamente falando. Ou se preferirem, menos socialista e mais liberal. E é aqui que está a principal originalidade destas eleições, e do seu resultado, que foi a colocação no poder do partido político mais liberal desde o 25 de Abril de 1974. Para espanto de muito boa gente, o país dito sociologicamente de esquerda (um dos mitos que cai por terra nestas eleições) deu uma expressiva vitória ao papão “neo-liberal” Pedro Passos Coelho. Porquê?

Num cenário de crise económica e política, com o fantasma da bancarrota à porta, os portugueses que votaram recusaram a demagogia, as experiências políticas, os ziguezagues ideológicos e éticos, e escolheram o projecto de sociedade que lhes dá mais esperança, que combina austeridade, protecção social aos mais desfavorecidos e crescimento económico. Cansados de PEC’s sucessivos, confrontados com um desemprego histórico, com uma diminuição considerável do seu nível de vida, e também com um certo estilo de fazer política (marcado pela ficção, em detrimento da realidade), preferiram o realismo de PPC. Contra os teóricos do marketing político, os portugueses preferiram a verdade, nua a crua, e aqui PPC não os defraudou: foi transparente, não escamoteou as dificuldades e anunciou medidas antipáticas.

Concorde-se ou não com as soluções (e estou convencido que muitas das propostas mais liberais serão devidamente ajustadas à realidade nacional), o seu programa eleitoral era o único que oferecia um contrato sério com o eleitorado, um caminho sólido para a saída da crise que atravessamos: o cumprimento do memorando da “Troika”, na íntegra; a diminuição da despesa inútil do Estado, para sustentar a educação, a saúde e a protecção social públicas; a criação de condições para voltarmos a crescer economicamente, única forma de combater o desemprego e pagarmos as nossas dívidas. E por isso o seu programa foi tão discutido. Pelo contrário, o programa do CDS-PP era um manifesto, mais do que um programa eleitoral; o do PS um conjunto de generalidades que não se comprometiam com nada; o da CDU uma reciclagem do programa apresentado nas eleições de 2009, como se o mundo não tivesse mudado nestes dois últimos anos; o do bloco um projecto para uma outra sociedade, que não esta, assente numa democracia liberal, que liminarmente o rejeitou, em bloco. Comparem-se rigorosamente os programas eleitorais (pondo de lado as simpatias partidárias) e vejam se não chegam às mesmas conclusões.

Muitos quiseram ver na vitória de PPC um protesto a José Sócrates, mais do que uma vitória do próprio e do seu programa eleitoral. Objectivo: desvalorizar o resultado de PPC e o do PSD. Mas isto é subestimar a inteligência das pessoas. A desfaçatez é tanta que alguns iluminados, do alto do seu pedestal, invocaram o argumento da iliteracia para explicar a hecatombe da esquerda moderada e da esquerda radical. Como se os eleitores fossem incapazes de ajuizarem o estado do país pelas suas próprias cabeças. Não percebem, ou não querem perceber, a mensagem do eleitorado: desçam à terra, deixem-se de ilusões, e proponham soluções concretas para este mundo. Ora, foi isso que PPC fez, com mais ou menos gafe. E os portugueses, como contrapartida, deram-lhe uma vitória política que não mais esquecerá.

Friday, June 3, 2011

Fazer a diferença também na Cultura (II)

No último post falei do anunciado fim do Ministério da Cultura (uma ideia do PSD) e do falso problema que alguns logo quiseram criar. Tentei explicar que, mais do que a forma, o que interesse é o conteúdo, ou seja, saber se a cultura será assumida como prioridade estratégica da acção política do próximo executivo. Esta questão remete para outra, que julgo mais importante, e que tem a ver com o papel do estado na cultura, por muitos considerado insubstituível, e do investimento público nesta área.

Sobre isto, contrapunha o seguinte, para reflexão: parece-me, à luz da globalização, que o desenvolvimento económico tem de assentar também, tal como no passado, na arte, na ciência e na cultura. Até porque a cultura contribui mais para a economia do que outros sectores considerados muito relevantes (KEA, 2006). Em Portugal, por exemplo, o sector da cultura (público e privado) é o terceiro principal contribuinte para o PIB.

Mas este contributo pode ser potenciado, melhorado, tornando-se inclusivamente motor de um desenvolvimento económico e social sustentável. Cidades como Glascow, Bilbao, Cleveland, Kitakyushu, entre outras, vivem um notável renascimento urbano porque mudaram de paradigma, assentando o seu florescimento no desenvolvimento de bens culturais, nomeadamente nas áreas enfraquecidas dessas mesmas cidades, captando populações criativas e inovadoras, recebendo investimento, nacional e estrangeiro, promovendo o turismo e a sua marca territorial, convencendo as empresas locais da rentabilidade da aposta na cultura.

O Estado tem uma função social que é indeclinável, designadamente nas áreas da educação, saúde e cultura, mas tal não invalida que não se aproveite o actual debate para repensar o papel do Estado na Cultura, por outras palavras, para repensar as políticas públicas direccionadas para as estruturas e actividades culturais, a partir de uma concepção mais alargada do fenómeno cultural.

Julgo ser mais ou menos consensual que o Estado deve:
i) cuidar do “seu” património material e imaterial;
ii) garantir aos cidadãos nacionais a usufruição plena dos serviços que tutela e gere, como as bibliotecas, arquivos e museus, entre outros equipamentos públicos;
iii) apoiar a criação artística, no cinema, no teatro, na dança, na música, no livro, como entidade facilitadora de apoios financeiros e de subsídios aos particulares ou outras instituições/associações culturais da sociedade civil - mas aqui com uma diferença relativamente ao modus operandi dos últimos anos, que é a deste apoio traduzir-se num estímulo, num incentivo, e não numa dependência “eterna” dos subsídios do Estado. Para isso será fundamental criar novas parcerias entre o Estado e os privados, tornando ainda mais atractiva a Lei do Mecenato Cultural, de forma a encontrar-se outras soluções de financiamento dos projectos artísticos e culturais.

As funções clássicas do Estado na área da Cultura deverão ser asseguradas com eficiência, duma forma desconcentrada e descentralizada, sem desperdício e burocracia. De acordo com os estudos de opinião, a generalidade dos cidadãos portugueses concorda com elas e está disposto a viabilizá-las com os seus impostos. Como tal, parte do Orçamento do Estado (1%?) deveria ser canalizado para a conservação e valorização do património cultural do Estado e para o apoio à criação e à difusão cultural, políticas que deveriam ser desenvolvidas de forma integrada com a educação, com a ciência e com o turismo e em estreita articulação com os municípios, reduzindo custos mas ao mesmo tempo assumindo-se como parte duma estratégia para enfrentar a crise económica e financeira.

Como traves-mestras da acção do Estado na Cultura propunha:
i) a valorização e promoção da Língua e Cultura Portuguesas;
ii) a conservação, estudo e reabilitação do património cultural;
iii) o estímulo à criação artística e à difusão cultural;
iv) a qualificação e modernização dos serviços e equipamentos públicos culturais;
v) a integração das políticas públicas culturais com a educação, a ciência e o turismo.

Definido o papel do Estado, importaria depois adequar a estrutura/organização existente à melhor execução das políticas públicas direccionadas para a Cultura, desde logo avaliando a eficácia e os resultados do PRACE, e, se necessário, introduzindo correcções com vista à racionalização dos recursos e à eliminação de redundâncias entre os serviços e equipamentos. É aqui que a discussão sobre a melhor orgânica para a cultura deve ter lugar, não antes.

Não sendo uma tarefa fácil, é exequível, e os portugueses não deixarão de agradecer…

Tuesday, May 31, 2011

Fazer a diferença também na Cultura (I)

Uma das polémicas desta campanha eleitoral prende-se com o anunciado fim do Ministério da Cultura pelo PSD. Claro, se este partido ganhar as eleições… Previsivelmente, caiu logo o Carmo e a Trindade. Já corre, como é da praxe, uma petição electrónica contra a extinção do dito; multiplicam-se na imprensa escrita os artigos de opinião contra mais esta deriva “neo-liberal”; pululam nas redes-sociais os estados de alma a favor da manutenção do Ministério da Cultura. Nesta, como noutras matérias, a resistência à mudança é por demais evidente, protagonizada por interesses instalados e corporações diversas, que olham com desdém para qualquer alteração ao status quo.

É certo que a ideia, uma vez mais, foi mal explicada. Mas vamos supor o contrário, que sim, que a medida até tinha sido devidamente fundamentada. Podíamos então começar com as seguintes perguntas: de que vale um Ministério da Cultura se não for uma prioridade política? Se for uma espécie de “parente pobre” do executivo? Se estiver desprovido de meios financeiros e da necessária articulação com outras pastas, como a Economia, a Educação e o Turismo? E podíamos continuar por aí fora… Depois, prosseguíramos com a explicação, com princípio, meio e fim. Para toda a gente perceber a ideia, com a maior transparência, como deve ser.

Logo, parece-me que esta é uma falsa questão: mais do que a forma interessa o conteúdo. Mais do que saber se ela está num ministério, numa secretaria de Estado ou mesmo fundida com outras pastas, o que importa saber é se a Cultura é efectivamente uma prioridade política para o próximo governo e para Portugal. Para os agentes culturais o que interessa, não é tanto se a Cultura está na tutela dum ministério, duma secretaria de Estado, ou na dependência ou não do primeiro-ministro, mas se faz parte dum sistema leve, desburocratizado, operacional, que descentralize competências e meios pelas instituições e equipamentos culturais existentes no território nacional. Por outras palavras, que dote aquelas de autonomia e meios (humanos, técnicos e financeiros) para prosseguirem com eficiência a sua função. Para os destinatários das políticas culturais públicas e privadas, isto é, o público, é indiferente a orgânica da Cultura, importando antes os resultados dessas mesmas políticas e a sua adequação às expectativas criadas.

Se a Cultura for uma prioridade política no próximo executivo, como desejamos, a sua colocação na dependência directa do primeiro-ministro até pode ser uma boa solução, desde que assumida como área transversal na acção política do executivo e entregue à pessoa certa. Além de centralidade política, a Cultura pode ainda ganhar eficácia na sua actividade, enquanto a simplificação da sua orgânica contribuirá para a redução da despesa pública. Mas há outras soluções, experimentadas lá fora com sucesso, como a criação dum super-ministério que junte, por exemplo, Cultura, Educação, Ciência e Turismo, dada a proximidade de objectivos, estratégias e metodologias.

Logo, o argumento de que a Cultura perderia “a dignidade de uma acção autónoma”, defendido, por exemplo, por Inês Pedrosa (V. “A Cultura Dependente”, in O Sol, de 20 de Maio) é um argumento que não colhe. Aliás, julgo até que seria profícuo se, em vez de autonomia, a Cultura tivesse antes uma acção integradora, devidamente articulada com as restantes políticas do governo. Como é inusitada a afirmação de que “a Cultura passará a ser o passatempo das horas vagas do primeiro-ministro”. Há aqui algum preconceito cultural e precipitação na análise duma ideia que, repito, até pode ser uma boa ideia para a Cultura. A proximidade institucional pode ser uma grande vantagem, se bem explorada, na captação de atenção ao mais alto nível para as políticas culturais e para a rentabilidade económica destas mesmas políticas. Assim esteja lá a pessoa certa, no lugar certo, com peso político, conhecimento profundo e experiência acumulada na área. Que dê sentido prático à importância estratégia que a Cultura pode ter no desenvolvimento sustentável da sociedade portuguesa.

Logo, analisemos primeiro o teor da medida (que não pode ser desligada do ajustamento orçamental que vai cair em cima de todos os ministérios), vejamos depois os prós e os contras do anunciado fim do Ministério da Cultura, e, por fim, tome-se uma posição, tente-se influenciar a opinião pública e, com esta, o poder político. Agora, há um pormenor que não pode ser escamoteado: estando no programa de um determinado partido político, e sendo sufragado numas eleições legislativas pelo povo, o governo que sair daqui tem toda a legitimidade democrática para alterar o enquadramento orgânico da Cultura. Ou a legitimidade democrática só é convocada quando queremos defender os nossos pontos de vista?

Tuesday, May 24, 2011

NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (8) - A Imprensa Humorística Republicana...

A I República traz consigo a explosão das práticas de humor político e social. O fenómeno verifica-se no teatro de revista, na comédia de costumes, nos jornais humorísticos e na caricatura. O permanente alvoroço político destes anos fornece a melhor matéria-prima para um humor simples e directo, por vezes um pouco grosseiro, que encontra o melhor dos ecos numa população cansada de tamanha confusão.

Na ridicularização da sociedade republicana, salta à vista o papel que a imprensa satírica teve, independentemente da sua orientação política ou ideológica. Este tipo de imprensa, que não poupara a monarquia apesar de alguns constrangimentos legais, cavalga agora a onda das promessas de liberdade de expressão proclamadas pela República para renovar a sua carteira de títulos, efémeros a maioria, duráveis, alguns. Aparece uma nova geração de desenhadores e caricaturistas que se revelam nos novos jornais humorísticos e satíricos surgidos no início do novo regime, não só em Lisboa como no Porto e noutras cidades. É também pelo seu traço que ocorrem as primeiras manifestações do modernismo artístico em Portugal. Os jornais satíricos desta época revelam ainda outra característica importante: enquanto no anterior regime toda a imprensa humorística era antimonárquica, agora a diversidade editorial é maior, havendo publicações pró-realistas, enquanto outras se afirmavam ferozmente antitalassas.

Os mais importantes jornais humorísticos antitalassas, isto é, antimonárquicos, foram sem dúvida O Zé, sucessor da folha O Xuão, O Moscardo e O Espectro.

O Zé publicou-se em Lisboa, entre 1910 e 1919, por iniciativa de Estevão de Carvalho, industrial gráfico, editor e publicista, e de Silva e Sousa, ilustrador e caricaturista – a mesma dupla que, em 1908, criara O Xuão, jornal humorístico de grande popularidade durante o governo ditatorial de João Franco. O Zé, semanário republicano humorístico e de caricaturas, contou com a colaboração de Alfredo Cândido, Hipólito Collomb, José Laranjeira e Stuart Carvalhaes. Republicano por convicção e crítico por vocação, O Zé nunca se coibiu de usar a ironia mais ácida contra os traidores, ambiciosos e oportunistas.

O Moscardo, que surgiu para combater outro jornal humorístico, Os Ridículos, próximo dos monárquicos, publicou-se igualmente em Lisboa, em 1913. “Zumbindo e zombando, irei ferindo os ridículos da política e dos maus costumes”, mas “Republicano de antes de 5 e de antes quebrar que torcer, reservarei para os monárquicos a caça grossa” – assim apresentava o seu programa de voo. Durou apenas 4 números. Foram dinamizadores deste semanário Francisco Valença (fundador, director artístico e ilustrador), Carlos Simões (director literário e redactor) e João Pisco, poeta popular de serviço. Custava 2 centavos.

O Espectro apareceu em Lisboa em Maio de 1925, antecipando em um ano a revolução que instituiria a Ditadura Militar. O tom geral é o do humor roído pelo sarcasmo: “se não fosse algum esquisito sintoma de cinismo, brilhando raro no horizonte, acreditar-se-ia que a nacionalidade perde de todo a coesão e que nem somos ao menos, um sistema gregário: rebanho, manada, récua”. Com direcção política de Artur Leitão e direcção artística de Francisco Valença, o semanário deu à estampa somente 11 números, não obstante a colaboração de humoristas conceituados, como Amarelhe, leal da Câmara, Alfredo Cândido, Stuart Carvalhaes, Eduardo Faria, Emmérico Nunes, Rocha Vieira, entre outros. Os textos eram da responsabilidade de João Bastos, André Brun, Carlos Simões e Ruy Vaz.

PS. Ilustra este "post" a primeira página do primeiro número d'O Moscardo, de 27 de Maio de 1918. Em plano de destaque, temos D. Manuel II, nesta altura exilado em Londres, num desenho de Francisco Valença.

Thursday, May 19, 2011

O desemprego: a tragédia nacional...

Ficámos ontem a saber que caminhamos, a passos largos, para a “catástrofe social”: segundo o INE no final do 1.º trimestre deste ano existiam em Portugal cerca de 700.000 desempregados oficiais, isto é, 12.4%!!! Mais 70.000 quando comparamos estes dados com os do período homólogo do ano passado. Mas o que é mais grave é que estes valores desactualizam por completo a previsão do governo de 13% de desemprego para 2013. Não, não será para 2013. O mais certo, e não é preciso ser analista, é atingirmos já este ano uma taxa de 13%, com uma tendência para piorar nos anos seguintes para níveis nunca vistos em Portugal. Lembro aqui que o FMI prevê, para o corrente ano e para 2012, uma recessão económica de 2%, como resultado do ajustamento orçamental que o país terá de fazer e das dificuldades de financiamento de toda a economia.

O desemprego é sobretudo notório entre os jovens, dos 15 aos 25 anos, apanhando cerca de 30.000 pessoas nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2011. No conjunto do desemprego nacional a taxa de desemprego jovem subiu de 15% para 18%. E é geograficamente transversal: não há região do país que consiga escapar à tragédia nacional do desemprego.

Para agravar as coisas, apenas 42% dos desempregados oficiais recebem subsídio, isto é, cerca de 294.000 pessoas, bem menos de metade dos 700.000 desempregados estimados pelo INE. A economia paralela garante, não tenhamos dúvidas, a sobrevivência da outra “mais de metade”, sem alternativas no país.

Se somarmos aos 700.000 desempregados oficiais o número de desempregados inactivos (aqueles que desistem de procurar trabalho), que ronda os 200.000, teremos aproximadamente 900.000 mil pessoas que não têm trabalho. Note-se que não estão aqui contabilizadas as pessoas que frequentam programas ocupacionais no Instituto do Emprego e Formação Profissional (cerca de 50 mil), que no novo método do INE passaram a ser contabilizados como empregados. E a situação só não é de ruptura social total, porque entretanto emigraram de Portugal, na última década, 700.000 mil pessoas, a segunda maior vaga de emigração de que há memória.

As causas são por demais evidentes: a deterioração progressiva da economia, que se traduz no encerramento diário de muitas empresas e negócios e, consequentemente, na degradação do mercado de trabalho. O Estado também ajudou à “festa” distribuindo, sem critério, dinheiro a quem não devia, em vez de “privilegiar” as empresas exportadoras, de modo a criarem novos postos de trabalho. Resultado: desemprego generalizado e um aumento brutal da dívida pública portuguesa (a dívida directa do estado), que ultrapassou, pela primeira vez, o produto interno bruto do país.

Como inverter esta verdadeira tragédia nacional? Como inverter a “praga” do desemprego? Aqui, como em muitas outras coisas, importa mudar de paradigma. Desde logo não perder tempo em discussões estéreis, como a ideia peregrina de criação de “contratos orais de trabalho para jovens” (mesmo que contemplada no Código de Trabalho, a referência à possibilidade de falta de forma escrita configura uma situação de precariedade que é insustentável para quem é objecto desse tipo de contrato, deixando naturalmente uma margem de incerteza que depende da boa ou má-fé do contratante). Depois, seria muito profícuo enterrar a veleidade, tão típica dos últimos governos, de construir programas ou planos de criação de emprego, como se se pudesse criar empregos por decreto. Finalmente, o que os políticos devem fazer, chegados ao governo do país, é criar condições e um quadro legal simplificado favorável à criação sustentável de emprego. Por outras palavras, criar um ambiente para que as empresas privadas possam desenvolver o melhor possível a sua actividade, investindo, criando riqueza, gerando lucros e postos de trabalho.

Exceptuando os serviços públicos que disponibiliza à comunidade, cujo bom funcionamento deve garantir, o Estado não tem por função criar postos de trabalho ou fixar metas de criação de emprego (pode ter essa função, se mudarmos de sociedade, de regime político, se mudarmos duma economia de mercado para uma economia planificada, estatizada). Numa economia de mercado, numa democracia liberal, como é a nossa, o Estado deve, antes, ser um facilitador e regulador da actividade empresarial e não procurar ser um actor dessa mesma realidade.

Por isso, o próximo governo deve focalizar-se nesta mudança de paradigma. Através das leis, eliminar, como dizem os economistas, os “custos de contexto” (por exemplo, uma justiça lenta, ineficiente), mas também os custos de trabalho das empresas, baixando a carga fiscal para as empresas que investem e exportam. É por isso que, não sendo possível desvalorizar a moeda, pois fazemos parte duma moeda única, o EURO, a ideia da “desvalorização fiscal” é uma boa ideia, embora mal defendida. Em última análise, e por estranho que possa parecer, a melhor forma de defender o “Estado Social”, pode passar precisamente por reduzir a Taxa Social Única que, todos os meses, as empresas portuguesas (e os trabalhadores) pagam à Segurança Social. Simultaneamente, os governos devem ainda flexibilizar a legislação laboral, sem criar constrangimentos para quem emprega, e para quem trabalha.

Estas devem ser as preocupações dos futuros governantes. Só assim se conseguirá acabar com estas taxas históricas de desemprego; só assim se criará um clima de confiança, atractivo, quer para o investimento nacional quer para o estrangeiro, criando-se novos postos de trabalho; só assim se conseguirá combater eficazmente o desemprego dos portugueses, nomeadamente dos jovens; só assim evitaremos ser um “não-país”…

Friday, May 13, 2011

NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (7) - A Imprensa Humorística Monárquica...

A I República traz consigo a explosão das práticas de humor político e social. O fenómeno verifica-se no teatro de revista, na comédia de costumes, nos jornais humorísticos e na caricatura. O permanente alvoroço político destes anos fornece a melhor matéria-prima para um humor simples e directo, por vezes um pouco grosseiro, que encontra o melhor dos ecos numa população cansada de tamanha confusão.

Na ridicularização da sociedade republicana, salta à vista o papel que a imprensa satírica teve, independentemente da sua orientação política ou ideológica. Este tipo de imprensa, que não poupara a monarquia apesar de alguns constrangimentos legais, cavalga agora a onda das promessas de liberdade de expressão proclamadas pela República para renovar a sua carteira de títulos, efémeros a maioria, duráveis, alguns. Aparece uma nova geração de desenhadores e caricaturistas que se revelam nos novos jornais humorísticos e satíricos surgidos no início do novo regime, não só em Lisboa como no Porto e noutras cidades. É também pelo seu traço que ocorrem as primeiras manifestações do modernismo artístico em Portugal. Os jornais satíricos desta época revelam ainda outra característica importante: enquanto no anterior regime toda a imprensa humorística era antimonárquica, agora a diversidade editorial é maior, havendo publicações pró-realistas, enquanto outras se afirmavam ferozmente antitalassas.

Os mais importantes jornais humorísticos talassas, isto é, monárquicos, foram sem dúvida o Papagaio Real, O Thalassa e Os Ridículos. Começando por estes: Os Ridículos tinham sido fundados ainda no tempo da Monarquia Constitucional, mais precisamente a 3 de Outubro de 1895, mantendo-se, por 3 séries, até 1963. Mas foi na I República que este bi-semanário humorístico alfacinha ganhou maior popularidade. Dirigido por Cruz Moreira, o “Caracoles”, contou com a colaboração de um extenso rol de desenhadores e caricaturistas, do qual se destacam Alonso, pseudónimo de Santos Silva, Leal da Câmara, Alberto de Sousa, Silva Monteiro, Hipólito Collomb, Jorge Colaço, José Pargana, Silva e Sousa, Stuart Carvalhais e Natalino Malquiades. Mercê da sua diversidade temática e estilística, Os Ridículos ofereciam sempre um comentário gráfico actualizado e apimentado quanto baste. A simpatia pela Monarquia Constitucional é incontornável, sobretudo depois do 5 de Outubro de 1910. Para combater este jornal, foi até criado um outro semanário humorístico, ferozmente republicano, O Moscardo, que durou apenas 4 números.

O Thalassa publicou-se em Lisboa, entre 1913 e 1915. Foi dinamizado semanalmente por Jorge Colaço, Alfredo Lamas e Severim de Azevedo. Assumidamente monárquico, protagonizou a crítica mais mordaz e demolidora aos políticos republicanos, que desfilaram pelas suas páginas desfigurados física e, sobretudo, moralmente. Nessa acção de desgaste, além dele próprio, Jorge Colaço contou, sobretudo, com a colaboração do desenhador Alonso (Santos Silva). Pontualmente, encontram-se n’O Thalassa as assinaturas de outros artistas, como por exemplo de João Valério.

O Papagaio Real publicou-se igualmente em Lisboa, em 1914. Durante 5 meses, este semanário monárquico não deu tréguas à República, que insistentemente anunciava falida, nem aos seus dirigentes, que tratou com irreverência – linha editorial que talvez explique a sua curta existência. O Papagaio Real contou com o lápis de Almada Negreiros (director artístico), Gastão de Lys, Stuart Carvalhais, Jorge Barradas, Silva Monteiro, entre outros. A colaboração literária era assegurada por Rocha Martins, Machado Correia, Arménio Monteiro e Alfredo Lamas, director do jornal. Custava 20 réis.

PS. O desenho que acompanha este texto, publicado na 1.ª página d'Os Ridículos, de 12 de Outubro de 1910, poucos dias depois da revolução republicana, é de Silva Monteiro (1881-1937), um dos principais caricaturistas deste bi-semanário humorístico. O que temos aqui ilustrado é o "casamento" do Zé Povinho com a República, que, deitada, espera pela companhia do novo marido. A união do povo com o novo regime está assim consumada. Mas o divórcio estaria para breve...

Tuesday, May 10, 2011

Um dia humilhante...

A falta de tempo impediu-me de escrever sobre o anúncio que a troika fez na passada quinta-feira (5 de Maio), no Centro Jean Monnet, em Lisboa. Não sobre as medidas draconianas que foram apresentadas para endireitar o país, mas sobre um pequeno aspecto que passou (quase) despercebido à generalidade dos portugueses – pelo menos a fazer fé no que a seguir a comunicação social disse sobre o assunto, na globalidade da opinião publicada e mesmo na atitude geral perante aquele anúncio.

Ora, esse pequeno aspecto tem a ver com o atestado público de incompetência que foi passado a Portugal e, naturalmente, a quem nos governou nos últimos anos. Mas esse atestado de incompetência acaba também por ser dirigido a todos, sem qualquer subtileza: aos outros partidos políticos, a economistas, a gestores, a sindicalistas, a funcionários públicos, a académicos, enfim, a todos os portugueses, pois não soubemos pôr em prática as reformas estruturais agora tão necessárias.

A imposição daquelas medidas é uma derrota para Portugal, em toda a linha. E é uma derrota humilhante, de que devíamos sentir uma profunda vergonha: alguns iluminados, do BCE, do FMI e da UE aterram aqui, recolhem uns dados, durante um mês, e depois, com a maior sobranceria, explicam como se deve governar um país, a troco da ajuda financeira. Se querem dinheiro, então é assim que a coisa deve ser feita…

Mas isto foi encarado com a maior naturalidade, não despertando qualquer sobressalto nacional. Fomos até sossegados, com a maior desfaçatez, de que se trata de um bom acordo, que não há que ter medo, que não nos vão cortar os subsídios de férias e de Natal, e que tudo vai correr bem. Como era de esperar ninguém assumiu responsabilidades, ninguém reflectiu sobre o significado daquele dia, procurando, antes, qualquer vitória eleitoral nas medidas que iam sendo lançadas.

Entretidos na espuma dos dias, anestesiados com as horas infindáveis de programas sobre futebol e novelas, embrutecidos com os “Perdidos na Tribo”, o “Último a sair”, o “Peso Pesado” e afins, com um debate político que vive de sound bites, inócuo, sem substância, não “inscrevemos” um dia que ficará para a história como um dos dias mais humilhantes que vivemos. Proponho, para remediar isto, que o dia 5 de Maio seja elevado à triste categoria de dia de luto nacional, para não esquecer.

A 11 de Janeiro de 1890, para lembrar outro dia de humilhação nacional, quando os nossos velhos aliados ingleses fizeram um Ultimato a Portugal, que colocou um ponto final no ambicionado mapa cor-de-rosa em África, a indignação foi geral e fez cair governos. O Ultimato foi mesmo o primeiro momento de um processo de mudança que se iniciou no final do século XIX. Nunca, como no polémico ano de 1890, houve tanta discussão acerca da necessidade de uma “ideia colectiva”, de organizar os portugueses à volta da comunhão com a pátria e as coisas portuguesas. Cento e vinte anos depois, o que temos? Um vazio, como que vegetando na indiferença geral.

É por isso que um texto como aquele que José Pacheco Pereira escreveu no Público de sábado, de 7 de Maio, “Um dia estranho”, devia ser lido por todos, relido as vezes que fossem necessárias, discutido até à exaustão, nos jornais, nas rádios, nas televisões, nas escolas e nas universidades, emoldurado nas nossas casas, para nunca mais ser esquecido. JPP foi dos poucos a pôr o dedo na ferida, com a lucidez do costume. Dos poucos a indignar-se contra a falta de forças para a mudança, contra o “conservadorismo da indiferença que impera” nesta pátria tão mal tratada.

Nada como citá-lo: “Este foi um dia estranho. Mais estranho ainda porque a sua estranheza passa despercebida a muita gente. Estamos como que anestesiados, passados, adormecidos, atordoados, escolham o termo. No dia em que escrevo, passaram 24 horas sobre saber-se quem governa Portugal nos próximos 3 anos. E não somos nós, nem quem escolhemos, nem quem vamos escolher. São “eles”, um deles de olhos azuis, como diz a comunicação social com o seu gosto pela trivialidade, direitinhos, capazes, sóbrios, eficazes, “eles”. Isto é natural? Não é. E também não é natural que achemos com tanta felicidade que o é.”

E continua: “Os nossos novos governantes, altos burocratas internacionais, (…) dedicaram um dia a fazer conferências de imprensa e a dar entrevistas. Ninguém acha mal, estranho, bizarro, que burocratas, funcionários, sem qualquer legitimidade democrática, apareçam a dizer o que devemos fazer e a comentar com displicência o que fizemos ou não fizemos. Os patrões deles nem sequer se dignaram aparecer. Tinha sido melhor. A senhora Merkel sempre foi eleita pelos alemães, aqueles ministros franceses, holandeses, finlandeses, sempre têm que ir a votos explicar o que fazem aos seus povos, e como estão a gastar o dinheiro dos seus impostos, e por isso podem dar-nos lições e ralhetes. Seria melhor, mas nem isso já merecemos, porque achamos bem que o funcionalismo europeu, os burocratas de Bruxelas, dêem conferências de imprensa muito para além do seu mandato e do seu poder. Ah!, o estado de necessidade faz engolir a vergonha!”

Mais do que um dia estranho foi, repito, um dia humilhante, que importa não esquecer, jamais; um dia que devia ser “inscrito” no nosso ADN, mas que o não foi, mergulhados que estamos no inconformismo geral, amorfos, pelo que pergunto: Estaremos condenados a indigência e ao fracasso como povo soberano? Teremos futuro como país? Seremos capazes de mudar de rumo e sentido?

PS. Para ler na íntegra o artigo de JPP, ver http://www.abrupto.blogspot.com/

Thursday, April 28, 2011

NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (6) - Rir é o melhor remédio...

A I República Portuguesa trouxe consigo a explosão das práticas de humor social e político. O fenómeno foi alimentado pelo teatro de revista, pela comédia de costumes, mas sobretudo pela imprensa humorística e pela caricatura, que conheceram então um novo fôlego.

O quadro político, de permanente instabilidade e confronto partidário, agravado pela crise da economia, forneceu a melhor matéria-prima para um desenho humorístico com estéticas diferentes, onde o traço simples e directo, por vezes até grosseiro, coexistiu com o traço mais vanguardista das primeiras manifestações do modernismo artístico em Portugal. Afonso Costa, Brito Camacho, António José de Almeida, Bernardino Machado e, nos anos 20, António Maria da Silva, são naturalmente os mais visados, dado o seu protagonismo na vida política da I República.

Embora a maioria dos caricaturistas estivesse com a República, o novo regime também trouxe consigo uma maior diversidade editorial, com as publicações ferozmente antitalassas, como O Moscardo e O Zé (sucessor do jornal humorístico o Xuão), a conviverem, nem sempre pacificamente, com as publicações pró-realistas, de que O Papagaio Real e O Thalassa são um bom exemplo.

Apareceram novos títulos de jornais, efémeros a maioria, duráveis alguns, embalados pelas promessas de liberdade de expressão proclamadas pelos republicanos. E, com eles, uma nova geração de desenhadores e caricaturistas que se revelaram nos jornais humorísticos que surgem sobretudo em Lisboa e no Porto, como Almada Negreiros, Jorge Barradas, Emmérico Nunes, Stuart Carvalhais, Bernardo Marques, Christiano Cruz, Correia Dias, Luís Filipe, Sanches de Castro, entre outros. Forma-se o Grupo de Humoristas Portugueses (1911), expondo os seus trabalhos em Salões na capital, em 1912, 1913 e, tardiamente, em 1920. No Porto, o gosto também é alimentado por Salões de Humoristas e Modernistas (1915), Fantasistas (1916) ou, simplesmente, Modernistas (1916 e 1919).

Confirma-se, assim, a importância crescente do desenho humorístico enquanto manifestação artística e plástica cada vez mais autónoma, ao mesmo tempo que se afastava da temática política para optar pela crítica dos costumes sociais e pela ridicularização dos hábitos das classes médias. Estava também consumada uma ruptura estética com a escola “bordaliana”, que se impôs “pela elegância, pelo estilismo feminino, pela redescoberta da beleza" (Osvaldo de Sousa).

Em 1912, Christiano Cruz, o porta-voz do Grupo dos Humoristas, afirmava no jornal A Capital que era preciso desviar a atenção do público “para a caricatura social, para a caricatura dos costumes, enfim, para a verdadeira caricatura: a impessoal”. Um ano depois, os novos já se congratulavam com a “derrota infligida à caricatura política, estreita e cheia de limites” (Christiano Cruz), assinalando “uma nova fase da arte” (António Soares), enquanto os velhos, como Alberto de Sousa, lamentavam a “desnacionalização da nossa caricatura”.

PS. O desenho é de Almada Negreiros, um dos "novos", publicado n'A Sátira, de 1 de Junho de 1911.

Wednesday, April 27, 2011

Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011). Uma homenagem...

Morreu Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011), um dos historiadores portugueses que mais se destacou pelas inovações e renovações que introduziu na investigação e ensino da história em Portugal na segunda metade do século XX.

Conheci VMG em 1988, durante o meu primeiro ano no curso de história da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. VMG leccionava nessa altura na rival Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e estava, julgo, no departamento de Sociologia. O conhecimento adveio duma entrevista que, juntamente com mais 3 colegas, lhe fizemos para um paper da cadeira de Metodologia da História, o “cadeirão” do 1.º ano, que na altura dava "precedência". A cadeira era orientada por outro grande historiador, Jorge Borges de Macedo, que nos desafiou para um trabalho sobre a Revista de História Económica e Social, fundada e dirigida por VMG de 1978 a 1989, num total de 27 números. VMG recebeu-nos no seu gabinete com alguma curiosidade, mas também com muita simpatia e disponibilidade, contrastando com a atitude de outros professores da Nova, que nos “despacharam” num ápice. A entrevista, preparada para 1 hora, durou cerca de 4 horas, durante as quais não só ficámos a saber tudo o que era necessário para o dito paper, como recebemos uma verdadeira lição de vida, tal a diversidade de temas problematizados pelo historiador. Fiquei, naturalmente, extasiado com a sabedoria e  a experiência de vida acumulada por VMG. Lembro-me que, até à data, só tinha experimentado tal sensação com as aulas de JBM. Agora, passava a dispor de duas referências que não mais largaria na minha actividade como investigador e professor.

Mas passemos agora à obra de VMG, numa análise necessariamente sumária e focada nas suas principais linhas de força, para usar uma linguagem tão cara a JBM. VMG foi responsável (e o seu mais destacado representante) pela introdução em Portugal da corrente historiográfica ligada à “História Nova”, por sua vez ancorada na revista Annales e nas posições de Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel. Para isso foi decisiva a sua estadia em França, a partir de 1947, tornando-se investigador do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, aqui permanecendo até 1960. Contactou então com os mais destacados historiadores franceses que impulsionaram a “História Nova” e publicou dois dos seus trabalhos mais importantes no domínio da história económica: Prix et Monnaies au Portugal, 1750-1850 (1955) e L’Économie de l’Empire Portugais (XV – XVI siècles), em 1959, sua dissertação de doctorat de État. Com a conclusão do doutoramento, VMG regressou a Portugal, ficando como professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, do qual seria afastado em 62. Voltou a França, entre 1971 e 1974, onde foi professor convidado da Universidade de Clermont-Ferrand. Depois do 25 de Abril regressou novamente ao seu país, desta vez para assumir a pasta da Educação e Cultura (1974). Foi director da Biblioteca Nacional  (1984) e professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL, na qual atingiu a jubilação, em 1988, por limite de idade.
Durante estes anos publicou uma obra muito vasta e bastante variada, com escritos que vão da filosofia à cultura, da emigração à demografia, da história social à história económica, do ensino à investigação, da historiografia às comemorações. Não descurou os trabalhos de síntese e de divulgação, como é o caso de Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa (1971), dos muitos artigos que publicou na Revista de História Económica e Social, entre 1978 e 1989, ou mesmo dos Ensaios reunidos em 4 volumes (1968-1971).
Privilegiou duas temáticas: os Descobrimentos e as problemáticas com eles relacionados, e a teoria e metodologia da história e a historiografia. Sobre a primeira, destacamos o livro Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 2 volumes (1963-65), talvez a mais emblemática, fruto de um intenso e prolongado labor e reflexão e de um profundo conhecimento das fontes, arquivísticas e impressas, a que podemos juntar Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar. Séculos XIII – XVIII (1990), obra que traz alguns contributos importantes para o estudo da respectiva temática, embora a maior parte dos estudos nela insertos já tivesse sido publicada anteriormente. Da segunda temática são de realçar os artigos que publicou no Dicionário de História de Portugal, na RHES e no volume 3 dos Ensaios, Sobre a Teoria da História e Historiografia. No Dicionário analisou, por exemplo, a noção de “complexo histórico-geográfico”, que constitui um importante contributo, ao nível teórico e metodológico, dado por VMG à historiografia.
Em suma, VMG foi um grande historiador, talvez um dos mais importantes historiadores portugueses da segunda metade do século XX, com uma obra a todos os títulos notável e inovadora. Contribuiu, como poucos, para “democratizar” a história, ampliando as temáticas a investigar, procurando superar a história tradicional, de tendências erudita, política e factual. Teve, como discípulos, alguns daqueles que também viriam a salientar-se como historiadores de renome, como Jorge Borges de Macedo, Joaquim Barradas de Carvalho, José Gentil da Silva, Julião Soares de Azevedo, Joel Serrão e Artur Nobre de Gusmão.
Enfim, vai deixar muitas saudades, pois foi também um homem excepcional.

Wednesday, April 20, 2011

De Cuba, uma ligeira brisa de liberdade...

No Diário de Notícias de ontem, num artigo sobre “A Europa em desagregação”, Mário Soares lamentava o comportamento do BE e do PCP relativamente ao FMI: “Os partidos da esquerda radical – PCP e Bloco – auto-excluíram-se do jogo do poder. Nunca apreciaram o projecto europeu. São partidos de mero protesto. O eleitorado não percebe o que querem.” E perguntava, oportunamente: “Voltar ao PREC? No actual momento europeu e mundial? Não lhes basta o exemplo de Cuba, que tanto apreciaram sempre, o país mais triste e empobrecido da Ibero-América?”

Ora, é precisamente sobre Cuba que escrevo hoje. Acontece que, para grande desilusão dos bloquistas e comunistas indígenas, até Cuba está a mudar. Inspirada no modelo chinês, Cuba começa a dar os primeiros passos, embora tímidos, na direcção duma economia de mercado. No léxico oficial chamam-lhe “actualização do modelo” cubano.

No VI Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC), que decorreu em Havana nestes dias, começou-se pelo óbvio, isto é, pela constatação da falência do modelo socialista que impera naquelas ilhas, com a convocação da nova geração para “rectificar e mudar sem hesitar o que deve ser rectificado e mudado” (as palavras são de Fidel Castro). É claro que isto não é assumido publicamente, mas quer na retórica política do antigo líder cubano quer nas intervenções do seu sucessor, o irmão Raul Castro, lá descortinamos o reconhecimento de que a “Revolução dos humildes” pode ter os dias contados… O actual presidente fala mesmo na "última oportunidade" para a geração que fez a revolução "corrigir os erros do passado e acertar o rumo do país".

Feita esta espécie de “mea culpa”, ainda que encapotada, o dito congresso aprovou algumas reformas económicas e políticas que não deixarão de ter impacto na desagregação do actual sistema político cubano. No que toca às políticas, que tiveram como pano de fundo as revoltas no mundo árabe (não vá o diabo tecê-las), destaco o anúncio do limite do desempenho de cargos públicos a dois mandatos de 5 anos, visto pela imprensa internacional com um “passo histórico”. Com isto, coloca-se um ponto final na perpetuação no poder dos dirigentes políticos, a bem do “rejuvenescimento sistemático” do regime. Não menos importante, é a assumpção de que o sistema de partido único chegou ao fim. O próprio Raul Castro assumiu os erros do monopólio de uma só organização, neste caso do PCC. Esta abertura permitirá a breve trecho, julgo, a “legalização” da oposição e o aparecimento de novos partidos que refrescarão o actual panorama político com novas ideias e propostas.

Do ponto de vista económico é de realçar a “transferência” para o sector privado de 1,3 milhões de funcionários públicos (num país onde quatro quintos da população trabalha para o Estado), “sem pressas mas sem pausas” (quem diria!!!), a inevitável diminuição dos subsídios, a reforma da agricultura, a liberalização do mercado imobiliário e da compra e venda de carros, acabando com a respectiva legislação em vigor (bastante anacrónica), a expansão do sector privado através da distribuição de 200 mil licenças para trabalho por conta própria, e, por último, o fim gradual da “libreta”, a típica caderneta que permite que todos os cubanos, independentemente dos seus rendimentos, tenham acesso a bens públicos essenciais por preços mais reduzidos. A ideia, tal como já defendi no post “Mudar de vida é preciso”, visa aprofundar a descriminação positiva dos pagamentos de saúde e educação em função dos rendimentos. Como rematava Raul Castro, “Nenhum país ou pessoa pode gastar mais do que tem”. Lapidar, não?

Numa altura em que o liberalismo é vilipendiado por quase todos, como a causa da generalidade dos males do mundo, não deixa de ser paradoxal que Cuba, onde a falta de liberdade e direitos políticos é por demais evidente, caminhe precisamente para uma sociedade… mais liberal!!! Nestes conturbados tempos que correm, sabe bem esta ligeira brisa de liberdade vinda de Cuba…

PS. Dedico este post ao meu amigo Raul Rasga.

Saturday, April 16, 2011

NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (5) - O pós-guerra...

No último post escrevi sobre a situação económica da I República até à entrada de Portugal na Grande Guerra. Neste debruçar-me-ei sobre o pós-guerra, ou melhor, sobre os efeitos devastadores do conflito militar e do vazio de poder criado com o assassinato de Sidónio Pais. Descontando algumas especificidades desta época, como o contexto da guerra, não deixamos de encontrar algumas semelhanças com a actualidade…

Portugal parece nesta altura uma nau à deriva perto do naufrágio. A sociedade está depauperada pela carestia, radicalizada pela política e esgotada pela balbúrdia, que dura há anos sem sinal de abrandamento. Os governos sucedem-se com uma média de 2 meses.

Do ponto de vista económico o país está de rastos. Portugal não recebe as esperadas indemnizações de guerra da Alemanha, com as quais planeava pagar as gigantescas dívidas à Inglaterra. A crise económica internacional agrava ainda mais as coisas: as remessas do Brasil, tradicional fonte de equilíbrio das contas nacionais, caem a pique. O sistema cambial desarticula-se e os preços sobem em flecha. Os comerciantes intensificam o açambarcamento e a especulação, práticas correntes durante a guerra.

A resposta do governo é pífia, com receio de novos levantamentos populares: em vez de impor a austeridade imprime mais dinheiro para acompanhar a subida dos preços, aumentando a circulação fiduciária e a desvalorização do escudo. Com excepção dos países derrotados, a Alemanha e a Áustria, Portugal é o país com a maior inflação da Europa. As notas são o único dinheiro em circulação; as moedas passam a estar amealhadas devido ao valor do metal, que depressa ultrapassa o seu valor facial. Ninguém deposita dinheiro em Portugal e todos o querem tirar dos bancos. A década termina com o espectro da fome desenhado como um fatalismo no horizonte.

Mas a crise do pós-guerra não afecta toda a gente do mesmo modo. Os comerciantes fazem fortunas com o açambarcamento e a especulação. Os importadores somam lucros rápidos com o comércio internacional, devido à falta de stocks. Os volframistas tornam-se milionários instantâneos minerando para a indústria de munições. Cresce sem precedentes o número de empresas de mercadorias, assim como as mercearias e os bancos. Como resultado de tudo isto surge uma nova classe social, os novos-ricos, objecto de muitas invejas e alvo predilecto dos caricaturistas, que os retratam arrivistas, broncos e sem maneiras.

Os que dependem de rendimentos fixos, os funcionários públicos e os jornaleiros rurais são os mais prejudicados pela crise económica. Pelo contrário, os operários mantêm intacto o seu poder reivindicativo, obtendo melhores regalias. O movimento sindical está mais forte do que nunca, o que explica o relançamento das greves a partir de 1919.

Como um mal nunca vem só, a peste pneumónica varre também Portugal, matando mais de 70.000 mil vidas. Para muitos a única solução é a emigração, que, depois da guerra, assume proporções bíblicas: Portugal perde 6,7% da sua população. Testemunha-o o escritor Raul Brandão: “No outro dia, em qualquer terriola do Douro, fecharam as portas e abalaram com as trouxas – homens, mulheres, velhos e crianças. E o padre, ao vê-los passar disse, num pasmo: Ah, vocês vão todos? Então esperem aí que eu também vou… E foi. Deu volta à chave da igreja e foi”.

Wednesday, April 13, 2011

Crise, identidade nacional e elites (II)

Outro aspecto importante na reflexão de Jorge Borges de Macedo (JBM), que pode ser de grande utilidade para os Estados, prende-se com o receituário sugerido para os períodos ou situações de abrandamento e/ou crise da identidade nacional (como a que vivemos agora), o que passa pela análise das propostas à Nação no seu improvisado ou copiado, e pelo conhecimento do que somos e temos sido.

Entramos, aqui, portanto, na questão do papel das elites, entendidas como um conjunto de pessoas a quem recorremos para salvar a colectividade, na formulação de propostas válidas e exequíveis com vista à resolução dos problemas do território nacional, neste caso ajustadas à escala de uma pequena potência.

Por outras palavras, de que modo o escol actual tem usado os conceitos mais importantes da ciência e da cultura? A resposta passa naturalmente pela avaliação do seu papel nas situações de abrandamento ou crise da identidade nacional. Ora, nestas tem prevalecido sempre o geral, o abstracto, com manifesto desinteresse ou desconhecimento pela dimensão nacional. Como nos diz JBM, “só à custa dos próprios erros – e muito mais à nossa custa! – é que o economista encontra a dimensão nacional para as suas análises abstractas. Ora, é esse o elemento basilar onde a cultura nacional tem indispensável significado, mesmo para as ciências exactas: não se trata de as nacionalizar; trata-se de as dimensionar e de aprender a agregar os elementos específicos, isto é, que nos definem”.

O historiador alerta-nos aqui novamente para a importância do concreto, para o problema de escala e de conteúdo das “propostas apresentadas à Nação”: estas devem ser ajustadas à dimensão nacional, comportando, na sua formulação, sem dúvida alguma, o presente, mas também o passado, a experiência acumulada, “condição de verdade e de sucesso difícil”, porém uma exigência indispensável, facilitadora da própria acção da elite nacional.

Como nos lembra JBM “as nações são conjuntos concretos e espirituais”. É certo que não podem deixar de pretender o sucesso material das suas propostas e formas de ser, em face de outras propostas e formas possíveis, mas estas têm de ser adequadas à dimensão nacional.

As nações existem para receber dados gerais, mas existem sobretudo para criar a particularidade – o que para nós é uma grande vantagem, pois, segundo JBM, “o português tem uma verdadeira vocação de particularidade, sua forma de ser”. Substituíram-na, reconhece, no ensino e no discurso, por generalidades técnicas. Porém, a cultura portuguesa existe para promover a particularidade, para adequar e redimensionar as propostas de civilização, sempre gerais. É esta a sua função.

A ciência é universal e não existe para as nações. Resulta daqui que tem de existir cultura para proceder ao ajustamento da ciência/técnica à realidade nacional, para atingir a dimensão própria e possível, sempre que for caso disso. Em suma: “assimilar não é só compreender: é, sobretudo, adequar, dimensionar os conceitos, de outro modo sofismáveis”.

E esta é uma das principais tarefas das elites, desde que estas, como pessoas de qualidade a quem recorremos para salvar a colectividade, não se transformem em aristocracias. É fundamental que as elites permaneçam naquela categoria; é fundamental que cumpram o seu dever; é fundamental que defendam a nação. Como nos diz JBM, “se não esquecermos a responsabilidade, encontraremos as elites essenciais e teremos as aristocracias como circunstanciais”, com aquelas em vigilância crítica, acrescentamos. Como se vê o desafio é enorme e continua válido…

Monday, April 11, 2011

Mudar de vida, é preciso...

De novo de mão estendida… Pois é, depois de 74 é a terceira vez que a ditosa pátria recorre à ajuda financeira externa. Desta vez não é directamente ao FMI, mas ao FEEF (Fundo Europeu de Estabilização Financeira), ainda que para este o FMI contribua com cerca de 25% do seu valor total (750 mil milhões de Euros). Estima-se que a ajuda a Portugal possa ir aos 90 mil milhões de Euros. Entretanto, o Dr. Cavaco pede “imaginação” na assistência financeira ao país (a desfaçatez, pelos vistos, é coisa sem limites em Belém), contribuindo para a cacofonia nacional, e deixando os dirigentes europeus à beira dum ataque de nervos… A reputação do país, já pelas ruas da amargura, agradece!!!

Mais do que apontar culpados (contrariamente a Vasco Pulido Valente, julgo que é um exercício fútil, pois as responsabilidades são de todos, Estado, bancos, empresas e famílias), importa perceber como chegámos até aqui. Desde logo, para não repetirmos os mesmos erros. A resposta parece-me simples: vivemos há muitos anos acima das nossas possibilidades. Por outras palavras, a riqueza criada foi/é manifestamente insuficiente para acudir às despesas. Logo, vai de contrair empréstimos. O problema não está em contrair empréstimos, pois todos os países o fazem. Os bancos estrangeiros fornecem fundos aos bancos nacionais que depois são canalizados para o crédito às empresas e indústrias. Até aqui, tudo bem. O problema está na “especificidade” portuguesa de contrair empréstimos: como não cria riqueza suficiente para pagá-los, contrai dívida para pagar dívida, num ciclo suicída sem fim à vista. Hoje, Portugal deve ao exterior quase 400 mil milhões de Euros (233% do PIB!!!). Desta dívida, 26% é do Estado, enquanto a dos bancos ronda os 55% do total. Além do crédito às empresas, a dívida dos bancos resulta, grosso modo, do crédito que disponibiliza para a compra de casa e de carros. Corolário lógico: as taxas de juro subiram para valores proibitivos (andaremos muitos anos a amortizar com o nosso trabalho a dívida externa portuguesa). Para termos uma ideia da dimensão do problema retenha-se que pouco falta para o Estado português estar a pagar por dívida a um ano o que não queria pagar a 10 anos (7%)!!!

Indissociável da subida dos juros foi a queda em espiral dos níveis de avaliação de risco de pagamento da dívida portuguesa, os célebres ratings, válido para a República como para os principais bancos e empresas públicas portuguesas. Foi a gota de água que faltava para o governo capitular a um pedido de ajuda externa. Esperam-nos, portanto, pelo menos “5 anos de austeridade, com mais impostos e menos protecção social” (título do DN, de 8 de Abril).

Com o FEEF e o FMI vem a receita já aplicada em 1977 e 1983: exceptuando a desvalorização da moeda, hoje impossível, teremos o inevitável aumento de impostos, cortes nos ordenados dos funcionários públicos(fala-se já no subsídio de férias e, depois, no de Natal), cortes nos investimentos públicos (não há TGV que resista), congelamento total de admissões na administração pública, entre outras. Resultará daqui, tal como naqueles anos, mais desemprego, salários em atraso, diminuição do poder de compra, subida dos preços dos bens essenciais, greves (já está marcada uma para 6 de Maio) e maior instabilidade social.

Mas será esta receita inevitável? Não haverá margem de negociação para outro acordo, com impactos menos negativos na vida das pessoas? Não estamos aqui perante uma oportunidade única para mudar radicalmente de estilo de vida? Para refundar Portugal com um novo modelo de desenvolvimento? Teremos lideranças políticas suficientemente fortes para protagonizar esta mudança tão necessária? Teremos mesmo que partir do ressuscitado PEC4 para negociarmos o apoio externo, como anunciou este fim-de-semana José Sócrates?

Julgo que não... Proponho, de seguida, algumas medidas que me parecem incontornáveis se queremos efectivamente "mudar de vida". Fico-me por 5, desde as mais simbólicas, com impactos pouco significativos (mas que poderão ter um efeito mobilizador na comunidade), até às mais estruturantes desse novo modelo de desenvolvimento, que considero fundamentais para um novo arranque económico.

SIMBÓLICAS:
- Redução do tamanho do Governo, quer em ministros, quer em secretários de Estado e sub-secretários de Estado, quer ainda em assessores: a fusão de alguns ministérios, com áreas de trabalho interligadas, poderá ser uma boa solução, para a sua eficiência, com a consequente diminuição daqueles cargos públicos (esta redução abrangeria ainda a administração central, com a extinção ou fusão das centenas de institutos públicos e fundações apoiadas pelo Estado);
- Redução do número de deputados na Assembleia da República, através duma reforma eleitoral que privilegie os círculos uninominais, aproximando os eleitores dos eleitos (estes passam a responder, e a ser avaliados, pelo seu círculo eleitoral e não pelas direcções partidárias);
- Redução do número de concelhos (os mais pequenos), e respectivas freguesias, através duma reforma administrativa do país, com a agregação dos concelhos extintos aos grandes concelhos limítrofes (veja-se o que se fez, com sucesso, em Lisboa, com a redução muito significativa do número de freguesias);
- Extinção da figura dos Governadores-Civis, e respectivo staff, provadamente sem grande finalidade;
- Eliminação de vez, no actual contexto, de qualquer possibilidade de Regionalização do país (a descentralização e a desconcentração de competências deve ser feita para os municípios e as freguesias, aproximando ainda mais a gestão da coisa pública das pessoas; na resolução de problemas extra-municipais, a associação entre municípios tem-se revelado operativa).

ESTRUTURANTES:
- Repensar a sério o papel do Estado, minimizando as suas funções à administração da justiça, segurança (nacional e local) e provisão de bens e serviços públicos (certas obras públicas, educação, saúde e segurança social: garantindo a liberdade de escolha na educação e na segurança social, e aprofundando a descriminação dos pagamentos de saúde em função dos rendimentos);
- Privatização, como resultado daquele exercício, de várias empresas públicas, dos transportes (TAP, CP, Refer, Carris, Metro de Lisboa e do Porto), passando pelos correios (CTT), empresas municipais (deviam ser todas extintas), até às empresas de comunicação (RTP, RTP 2, RTP N, RTP Internacional e rádios públicas);
- Regularização das contas públicas e reestruturação da dívida externa, pagando o que devemos lá fora, e pondo um ponto final na fama de caloteiros que já temos;
- Extinção das parcerias público-privadas, a ruína do Estado português (as PPP em curso vão custar, até 2050, cerca de 60 mil milhões de Euros, mais de metade da ajuda financeira agora solicitada, ou, se preferirem, cerca de um terço do PIB; verba astronómica que pesará todos os anos nas contas do Estado e que será suportada pelas gerações mais novas, incluindo a que está à rasca, e que vai ficar mais à rasca, e, pasme-se, incluindo os portugueses que nem sequer nasceram – nada como preparar o futuro!!!);
- Liberalização do mercado de trabalho (atenuando a protecção demasiado elevada nos contratos sem termo para, desta forma, estancar a alimentação do dualismo actualmente em vigor no nosso mercado de trabalho: os mais velhos estão sempre mais protegidos que os mais jovens) e diminuição, assim que possível, dos impostos, visando a captação de investimento nacional e estrangeiro.

Os dados estão lançados…

Saturday, April 9, 2011

NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (4) - A modernização falhada...

Portugal vive hoje uma das piores crises económicas de sempre, com o desemprego num nível histórico, próximo dos 11%. Há cem anos atrás, qual era a situação? O novo poder saído da revolução de 5 de Outubro promete recuperar o atraso nacional, colocar Portugal num lugar tão avançado como a Europa além-Pirinéus.

Mas, nos primeiros 10 anos não se vive qualquer explosão de desenvolvimento, nem qualquer surto de progresso que não resulte da natural extensão do que já antes estava em curso. Não se assiste sequer ao lançamento de um grande projecto de obras públicas. A única excepção é o início da construção, no fim do decénio, dos bairros sociais do Arco do Cego e da Ajuda, em Lisboa, mais por imposição do movimento operário do que por planificação governamental.

Para este quadro também contribuiu a crença no liberalismo e na iniciativa individual: os primeiros responsáveis republicanos advogam um Estado pouco interventor, razão que explica a ausência de projectos de equipamento público ou leis de segurança social. Depois interpõem-se as guerrilhas partidárias. E por fim surge a Guerra. Não há pois tempo para pensar o desenvolvimento, entregue à acção espontânea da sociedade.

O desenvolvimento que se verifica, não sendo espectacular, é apesar de tudo consistente e sustentado nas seguintes actividades:
- nos aumentos verificados nos circuitos dos transportes e das comunicações: nos transportes destaca-se o comboio, cada vez mais usado (só na CP, de 1908 a 1913, o movimento de passageiros aumenta de quase 8 milhões para cerca de 10 milhões, e o de mercadorias de menos de 1,5 para mais de 1,8 toneladas); outro meio de transporte em rápido crescimento é o veículo motorizado: ao longo destes 10 anos, o número de automóveis em circulação nas deficientes estradas portuguesas aumenta seis vezes (surpreendentemente, o Porto é em 1912/13 a cidade europeia com mais índice de automóveis por mil habitantes); nas comunicações, a novidade é a telegrafia sem fios, que o governo instala a partir de 1912; o telefone, embora espalhando-se cada vez mais, continua a ser um luxo de poucos;
- nos aumentos no consumo de energia eléctrica, notórios na cidade de Lisboa;
- na expansão da construção civil (entre 1912 e 1914 surgem 150 mil novos prédios) e no crescimento das importações de carvão e algodão em bruto, denunciando prosperidade industrial;
- no aumento das exportações de cortiça, conservas de sardinha e vinho do porto.

A Guerra, com as suas necessidades de abastecimento e o seu simultâneo proteccionismo económico, traz consigo outro surto de crescimento industrial, sobretudo no sector químico, nos cimentos, no têxtil, no calçado, nas moagens e nas conservas de peixe, apesar das dificuldades de transporte, dos custos das matérias-primas e das reivindicações sociais. São sectores de utilização intensiva de mão-de-obra, o que leva a um crescimento considerável do operariado, constituído em grande parte por mulheres, crianças e adolescentes (representam cerca de 50% dos 142 mil indivíduos estimados para 1917).

Verifica-se também um aumento significativo do número de instalações fabris, que em 1917 é de 8425 unidades, o dobro de 1911. A actividade produtiva permanece na maior parte repartida por estabelecimentos artesanais, oficinas e pequenas fábricas.

O abismo entre os programas políticos e a realidade permanece.

PS. O desenho é de Alfredo Cândido, dado à estampa na revista Amanhã, de 1 de Março de 1922.

Wednesday, April 6, 2011

Crise, identidade nacional e elites (I)

Acabo de reler um texto que, julgo, poderá ser de grande utilidade na percepção da actual crise portuguesa (e europeia): refiro-me a “Não temos o direito de desistir”, de Jorge Borges Macedo (nada como relembrar o “velho” mestre), publicado na revista Prelo, N.º 1 (Out./Nov. 1983). Tentarei testar alguns dos conceitos propostos por ele, aplicando-os ao actual contexto político e económico, que é dramático [na altura em que escrevia este texto fui confrontado com o pedido de ajuda externa do Estado português, o terceiro em quase quarenta anos de Democracia!!!].

JBM reflecte sobre o problema da identidade nacional, e sobre o papel das elites. Tratarei, neste post, apenas do primeiro, reservando para um segundo post a questão das elites. O que entende JBM por identidade nacional? Nada como citá-lo: “Entendo por identidade nacional uma coincidência mínima dos comportamentos, na percepção de que os problemas que é necessário enfrentar se especificam no conjunto nacional e na certeza de que os projectos de vida colectiva se vão desenvolver no sentido de serem vividos, aplicados e verificados em comum”.

Coincidência mínima de comportamentos, problemas e projectos. Seria importante que as actuais lideranças políticas interiorizassem, desde logo, o conceito de identidade nacional (é certo que ele não pode estar desligado da Europa, mas esta só faz sentido enquanto “Pátria da diversidade”, como Europa das Nações); depois, que identificassem com rigor os tais problemas “que é necessário enfrentar” (tarefa que não se avizinha muito difícil, face à quantidade de diagnósticos traçados, internos e externos); por último, pensar e executar projectos adequados para alavancar o país, mas “vividos, aplicados e verificados em comum”. Isto é, os projectos não podem dispensar o contributo e a participação activa da comunidade.

Impregnando a identidade nacional – que precisa envolver um conceito presente – encontra-se o contexto insubstituível do passado, repositório das dificuldades e das soluções já concebidas. O passado dá assim legitimidade ao conceito de identidade nacional. Esta torna-se, consequentemente, a consciência pública e comunicada da nação, na sua história, na sua cultura, no seu território e na missão que o país desempenhou ou desempenha. Logo, qualquer estratégia nacional, virada naturalmente para o presente e o futuro, deve contemplar igualmente a experiência política, económica, social e cultural acumulada pelo país. Esta será um precioso auxílio na definição duma estratégia nacional operativa.

Mas para JBM a identidade nacional não tem só conteúdo nacional-discursivo, mas também uma “expressão espiritual e subconsciente que se ajusta – humanizando-se – às diversas tecnologias, sistemas e formas de governo e dissolve as persuasões ideológicas que se lhe opõem”. A identidade nacional ganha, portanto, uma dupla componente: ela é, simultaneamente, uma vivência e um projecto.

Definido o conceito JBM vai depois ocupar-se das especificidades da identidade nacional, com algumas advertências, não menos importantes, a saber: 1.ª A força da identidade nacional não é constante ao longo da história nacional (vivemos actualmente um período de “abrandamento” ou mesmo de crise da identidade nacional); 2.ª Esta força não é sempre igual em todos os grupos e organismos sociais, embora seja, em todos eles, “um elemento essencial que dá ordem e sentido à resposta portuguesa que tem acabado por vencer” (que grupos hoje protagonizam esta força?); 3.ª A identidade nacional “não é um elixir ou um conjunto automático de soluções”; pelo contrário, “é um guia, um conselho, uma esperança, uma exigência de pensar, não vá supor-se que as soluções se deduzem no processo das ideologias”.

As soluções requerem, antes, debates, propostas em confronto, choques de variável dureza, até se encontrar e adquirir força de aplicação. Processo que segundo JBM nos permite conservar a unidade e espírito nacional. Continuaremos…

Monday, April 4, 2011

NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (3) - A crise financeira e económica...

Numa das edições do Público, Vasco Pulido Valente escreveu: “(…) a dívida directa do Estado está hoje em 147 mil milhões de Euros, 90% do PIB (quando devia ser no máximo de 60%). Os peritos falam em recessão e numa intervenção eminente do FMI”.

Há 100 anos atrás a situação não era nada melhor. Portugal vivia também uma grave crise financeira e económica, que se agravaria nos anos 20. A inflação era galopante: o pão era nove vezes mais caro, a carne quinze vezes, o azeite e as batatas vinte e duas vezes e o carvão dez vezes, comparando com os valores anteriores à Guerra. Em relação a 1914, a inflação em 1923 era de 1720%. A maior nota de 1914, a de 100$00, valia um quinto desse valor em 1920. O governo criou então a nota de 1000$00 (coisa que em 2011 não pode fazer), nota que quatro anos depois valerá apenas 40$00 dos de 1914.

A causa desta inflação galopante estava na escassez de bens essenciais do pós-guerra e do fabrico descontrolado de notas, única forma imaginada para se financiar a dívida pública nestes anos difíceis (hoje, recorre-se ao endividamento externo; aliás, já se contrai dívida para amortizar dívida, pelo que levaremos muitos anos até nos libertamos da pressão dos mercados financeiros!!!). O escudo desvaloriza-se mais depressa do que o ritmo a que se consegue fabricar notas, e a espiral parece não ter fim.

A par da crise financeira, a crise económica era agravada pela diminuição das remessas dos emigrantes e pelo fim da ajuda inglesa à participação na Guerra. A dívida do Estado, que em 1918 era inferior a 1 milhão de contos, ultrapassa despreocupadamente os 8 milhões em 1924, pulverizando o sonho de um orçamento equilibrado que Afonso Costa ainda concretizou. Com a queda cambial, o valor das exportações foi três vezes menor que o das importações entre os anos de 1922 e 1927.

O entesouramento das moedas continua, que refundidas por particulares rendem acima do valor do seu rosto: em 1925, 99% das transacções eram feitas, não em metal mas em papel. Desaparecidas as moedas, as casas comerciais passam a emitir talões para os trocos, que aceitarão de volta em pagamento. Todo o país vive à custa deste dinheiro espontâneo, improvisado em farrapos de papel ou discos de lata, impressos, dactilografados ou apenas manuscritos, com ou sem carimbo ou assinatura. A fuga de capitais, das grandes fortunas ou dos novos-ricos, atinge valores astronómicos em 1920-1921.

A bancarrota nacional era então profetizada por reputados economistas, que viam o país afundado num cenário de catástrofe irreversível. Mas, paradoxalmente, havia um reverso desta moeda quase falida: a inflação, tornando mais competitiva a indústria nacional, acabou por beneficiar os sectores produtivos, tanto do lado patronal como do lado operário. A desvalorização protege o mercado interno e colonial, produzindo a expansão dos têxteis, da alimentação, da indústria química, do cimento ou do tabaco. Os sacrificados foram as classes médias que viviam do comércio, ameaçadas pela proletarização e o desemprego, os funcionários, os militares, os pensionistas, e toda a gente que dependia de rendimentos fixos – estava criado o caldo para a afirmação de ideologias radicais, à esquerda ou à direita, que poriam fim a 16 anos de República…

PS. O desenho é de Stuart Carvalhaes, e saiu n'O Século Cómico, de 18 de Dezembro de 1920.

Monday, March 28, 2011

NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (2) - Da Arte da Sedução...

Uma das alterações sociais mais importantes que atravessaram a sociedade portuguesa nos anos 20 foi sem dúvida a independência feminina. Mas tratava-se duma independência ambígua: a mulher não quer ser livre para ter um emprego e libertar-se da gestão familiar, como os homens; a mulher quer ser livre “apenas” para estar investida da iniciativa de seduzir, substituindo-se ao tradicional objecto passivo de sedução. Nesta, passa passar a ter uma atitude activa, a portar-se como uma coqueterie. A mulher dos anos 20 deve por isso poder sair só ou acompanhada pelas amigas ou pelos amigos, ousar invadir terrenos antes interditos, sorrir e falar em voz alta, apreciar o mundo à sua volta, desenvolver uma actividade física ou intelectual.

Mas esta missão implica também investir nos aspectos mais físicos das regras de atracção, ou seja, cuidar da imagem da cabeça aos pés. Constrói-se, portanto, uma ideia de beleza feminina que nada tem a ver com os parâmetros do passado, antes possuindo algumas características do homem. Surge o perfil andrógino a que todas as mulheres da sociedade elegante aderem e que tão bem calha à equívoca sexualidade destes tempos. As mulheres modernas “cortam os cabelos à garçonne, guiam automóveis, montam a cavalo, fumam os seus cigarros e, quando calha, o seu charuto, praticam todos os desportos, vão ao club, usam badine e monóculo, vestem pijamas femininos”, estabelecia a revista ABC em Abril de 1926.

Portugal adapta-se à ideia de encarar a mulher como uma figura de linhas direitas, quase masculina, sem as curvas de busto e anca que faziam as delícias de outras épocas. A moda “aboliu a cintura, reduziu as ancas, suprimiu, quanto possível, as formas femininas”, lia-se na mesma ABC de Junho de 1926. Para acentuar o lado feminino, recorre à cosmética, em profusão nunca antes igualada: rouge, bâton, pó-de-arroz, lápis dos olhos, rimmel e aparo das sobrancelhas (reduzidas a um traço) tornam-se obrigatórios em toda e qualquer ocasião social. A brilhantina e o fixador, por seu lado, colam o cabelo curto à nuca, rematando a composição da cabeça feminina.

Generalizou-se o consumo de revistas dirigidas ao público feminino, desde a requintada Voga às mais difundidas Modas e Bordados e Eva, com indicação das tendências da moda, apresentação de modelos caros e extravagantes, supostos segredos de beleza e conselhos acerca do arranjo e do comportamento. Tudo tem regras para as mulheres, até o caminhar.

Mas, para lá dos rituais de futilidade, as mulheres começam agora a participar activamente na vida intelectual e artística portuguesa. Emergem nomes que se tornam conhecidos, como a da poetisa Fernanda de Castro, mulher de António Ferro, ou o da pintora Sarah Afonso, que casa com Almada Negreiros. Judith Teixeira (ou “Lena de Valois”), amiga do casal Negreiros, é o paradigma da mulher livre da época, como reflecte nos títulos de ousadas obras poéticas: Amorosa, Sinfonia Pagã, Meus Vícios, Decadência, Nua, Poemas e Bizâncio. Mas a maior de todas, embora mais oculta, é a poetisa Florbela Espanca, precursora da liberdade criativa no feminino, através de uma obra intensa, conturbada e plena de sensualidade, denunciando uma perturbação interior que culmina com o seu suicídio em 1930, aos 36 anos.

Para o fim da década, enquanto a actriz Palmira Bastos ou a jornalista Teresa Leitão de Barros exigem para as mulheres carreira profissional e “armas iguais” às dos homens, surge uma reacção conservadora que se manifesta nas páginas de algumas revistas: “A mulher portuguesa é muito mais feminina do que feminista”, defende a directora da Modas e Bordados em 1929, erguendo uma tese que começa a fazer caminho na ideologia oficial. Chega ao fim uma certa forma de emancipação feminina.

PS. O desenho é de Jorge Barradas, publicado n'O Riso da Vitória, de 15 de Setembro de 1919.