Conheci VMG em 1988, durante o meu primeiro ano no curso de história da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. VMG leccionava nessa altura na rival Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e estava, julgo, no departamento de Sociologia. O conhecimento adveio duma entrevista que, juntamente com mais 3 colegas, lhe fizemos para um paper da cadeira de Metodologia da História, o “cadeirão” do 1.º ano, que na altura dava "precedência". A cadeira era orientada por outro grande historiador, Jorge Borges de Macedo, que nos desafiou para um trabalho sobre a Revista de História Económica e Social, fundada e dirigida por VMG de 1978 a 1989, num total de 27 números. VMG recebeu-nos no seu gabinete com alguma curiosidade, mas também com muita simpatia e disponibilidade, contrastando com a atitude de outros professores da Nova, que nos “despacharam” num ápice. A entrevista, preparada para 1 hora, durou cerca de 4 horas, durante as quais não só ficámos a saber tudo o que era necessário para o dito paper, como recebemos uma verdadeira lição de vida, tal a diversidade de temas problematizados pelo historiador. Fiquei, naturalmente, extasiado com a sabedoria e a experiência de vida acumulada por VMG. Lembro-me que, até à data, só tinha experimentado tal sensação com as aulas de JBM. Agora, passava a dispor de duas referências que não mais largaria na minha actividade como investigador e professor.
Mas passemos agora à obra de VMG, numa análise necessariamente sumária e focada nas suas principais linhas de força, para usar uma linguagem tão cara a JBM. VMG foi responsável (e o seu mais destacado representante) pela introdução em Portugal da corrente historiográfica ligada à “História Nova”, por sua vez ancorada na revista Annales e nas posições de Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel. Para isso foi decisiva a sua estadia em França, a partir de 1947, tornando-se investigador do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, aqui permanecendo até 1960. Contactou então com os mais destacados historiadores franceses que impulsionaram a “História Nova” e publicou dois dos seus trabalhos mais importantes no domínio da história económica: Prix et Monnaies au Portugal, 1750-1850 (1955) e L’Économie de l’Empire Portugais (XV – XVI siècles), em 1959, sua dissertação de doctorat de État. Com a conclusão do doutoramento, VMG regressou a Portugal, ficando como professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, do qual seria afastado em 62. Voltou a França, entre 1971 e 1974, onde foi professor convidado da Universidade de Clermont-Ferrand. Depois do 25 de Abril regressou novamente ao seu país, desta vez para assumir a pasta da Educação e Cultura (1974). Foi director da Biblioteca Nacional (1984) e professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL, na qual atingiu a jubilação, em 1988, por limite de idade.
Durante estes anos publicou uma obra muito vasta e bastante variada, com escritos que vão da filosofia à cultura, da emigração à demografia, da história social à história económica, do ensino à investigação, da historiografia às comemorações. Não descurou os trabalhos de síntese e de divulgação, como é o caso de Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa (1971), dos muitos artigos que publicou na Revista de História Económica e Social, entre 1978 e 1989, ou mesmo dos Ensaios reunidos em 4 volumes (1968-1971).
Privilegiou duas temáticas: os Descobrimentos e as problemáticas com eles relacionados, e a teoria e metodologia da história e a historiografia. Sobre a primeira, destacamos o livro Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 2 volumes (1963-65), talvez a mais emblemática, fruto de um intenso e prolongado labor e reflexão e de um profundo conhecimento das fontes, arquivísticas e impressas, a que podemos juntar Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar. Séculos XIII – XVIII (1990), obra que traz alguns contributos importantes para o estudo da respectiva temática, embora a maior parte dos estudos nela insertos já tivesse sido publicada anteriormente. Da segunda temática são de realçar os artigos que publicou no Dicionário de História de Portugal, na RHES e no volume 3 dos Ensaios, Sobre a Teoria da História e Historiografia. No Dicionário analisou, por exemplo, a noção de “complexo histórico-geográfico”, que constitui um importante contributo, ao nível teórico e metodológico, dado por VMG à historiografia.
Em suma, VMG foi um grande historiador, talvez um dos mais importantes historiadores portugueses da segunda metade do século XX, com uma obra a todos os títulos notável e inovadora. Contribuiu, como poucos, para “democratizar” a história, ampliando as temáticas a investigar, procurando superar a história tradicional, de tendências erudita, política e factual. Teve, como discípulos, alguns daqueles que também viriam a salientar-se como historiadores de renome, como Jorge Borges de Macedo, Joaquim Barradas de Carvalho, José Gentil da Silva, Julião Soares de Azevedo, Joel Serrão e Artur Nobre de Gusmão.
Enfim, vai deixar muitas saudades, pois foi também um homem excepcional.
2 comments:
Excelente texto, Álvaro. E estou completamente de acordo com a apreciação deste grande historiador!
Meu caro Luís Aguiar Santos,
Agradeço as tuas palavras; o teu feedback é sempre um estímulo.
Abraço Amigo
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