A I República Portuguesa trouxe consigo a explosão das práticas de humor social e político. O fenómeno foi alimentado pelo teatro de revista, pela comédia de costumes, mas sobretudo pela imprensa humorística e pela caricatura, que conheceram então um novo fôlego.
O quadro político, de permanente instabilidade e confronto partidário, agravado pela crise da economia, forneceu a melhor matéria-prima para um desenho humorístico com estéticas diferentes, onde o traço simples e directo, por vezes até grosseiro, coexistiu com o traço mais vanguardista das primeiras manifestações do modernismo artístico em Portugal. Afonso Costa, Brito Camacho, António José de Almeida, Bernardino Machado e, nos anos 20, António Maria da Silva, são naturalmente os mais visados, dado o seu protagonismo na vida política da I República.
Embora a maioria dos caricaturistas estivesse com a República, o novo regime também trouxe consigo uma maior diversidade editorial, com as publicações ferozmente antitalassas, como O Moscardo e O Zé (sucessor do jornal humorístico o Xuão), a conviverem, nem sempre pacificamente, com as publicações pró-realistas, de que O Papagaio Real e O Thalassa são um bom exemplo.
Apareceram novos títulos de jornais, efémeros a maioria, duráveis alguns, embalados pelas promessas de liberdade de expressão proclamadas pelos republicanos. E, com eles, uma nova geração de desenhadores e caricaturistas que se revelaram nos jornais humorísticos que surgem sobretudo em Lisboa e no Porto, como Almada Negreiros, Jorge Barradas, Emmérico Nunes, Stuart Carvalhais, Bernardo Marques, Christiano Cruz, Correia Dias, Luís Filipe, Sanches de Castro, entre outros. Forma-se o Grupo de Humoristas Portugueses (1911), expondo os seus trabalhos em Salões na capital, em 1912, 1913 e, tardiamente, em 1920. No Porto, o gosto também é alimentado por Salões de Humoristas e Modernistas (1915), Fantasistas (1916) ou, simplesmente, Modernistas (1916 e 1919).
Confirma-se, assim, a importância crescente do desenho humorístico enquanto manifestação artística e plástica cada vez mais autónoma, ao mesmo tempo que se afastava da temática política para optar pela crítica dos costumes sociais e pela ridicularização dos hábitos das classes médias. Estava também consumada uma ruptura estética com a escola “bordaliana”, que se impôs “pela elegância, pelo estilismo feminino, pela redescoberta da beleza" (Osvaldo de Sousa).
Em 1912, Christiano Cruz, o porta-voz do Grupo dos Humoristas, afirmava no jornal A Capital que era preciso desviar a atenção do público “para a caricatura social, para a caricatura dos costumes, enfim, para a verdadeira caricatura: a impessoal”. Um ano depois, os novos já se congratulavam com a “derrota infligida à caricatura política, estreita e cheia de limites” (Christiano Cruz), assinalando “uma nova fase da arte” (António Soares), enquanto os velhos, como Alberto de Sousa, lamentavam a “desnacionalização da nossa caricatura”.
PS. O desenho é de Almada Negreiros, um dos "novos", publicado n'A Sátira, de 1 de Junho de 1911.
Thursday, April 28, 2011
Wednesday, April 27, 2011
Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011). Uma homenagem...
Morreu Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011), um dos historiadores portugueses que mais se destacou pelas inovações e renovações que introduziu na investigação e ensino da história em Portugal na segunda metade do século XX.
Conheci VMG em 1988, durante o meu primeiro ano no curso de história da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. VMG leccionava nessa altura na rival Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e estava, julgo, no departamento de Sociologia. O conhecimento adveio duma entrevista que, juntamente com mais 3 colegas, lhe fizemos para um paper da cadeira de Metodologia da História, o “cadeirão” do 1.º ano, que na altura dava "precedência". A cadeira era orientada por outro grande historiador, Jorge Borges de Macedo, que nos desafiou para um trabalho sobre a Revista de História Económica e Social, fundada e dirigida por VMG de 1978 a 1989, num total de 27 números. VMG recebeu-nos no seu gabinete com alguma curiosidade, mas também com muita simpatia e disponibilidade, contrastando com a atitude de outros professores da Nova, que nos “despacharam” num ápice. A entrevista, preparada para 1 hora, durou cerca de 4 horas, durante as quais não só ficámos a saber tudo o que era necessário para o dito paper, como recebemos uma verdadeira lição de vida, tal a diversidade de temas problematizados pelo historiador. Fiquei, naturalmente, extasiado com a sabedoria e a experiência de vida acumulada por VMG. Lembro-me que, até à data, só tinha experimentado tal sensação com as aulas de JBM. Agora, passava a dispor de duas referências que não mais largaria na minha actividade como investigador e professor.
Conheci VMG em 1988, durante o meu primeiro ano no curso de história da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. VMG leccionava nessa altura na rival Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e estava, julgo, no departamento de Sociologia. O conhecimento adveio duma entrevista que, juntamente com mais 3 colegas, lhe fizemos para um paper da cadeira de Metodologia da História, o “cadeirão” do 1.º ano, que na altura dava "precedência". A cadeira era orientada por outro grande historiador, Jorge Borges de Macedo, que nos desafiou para um trabalho sobre a Revista de História Económica e Social, fundada e dirigida por VMG de 1978 a 1989, num total de 27 números. VMG recebeu-nos no seu gabinete com alguma curiosidade, mas também com muita simpatia e disponibilidade, contrastando com a atitude de outros professores da Nova, que nos “despacharam” num ápice. A entrevista, preparada para 1 hora, durou cerca de 4 horas, durante as quais não só ficámos a saber tudo o que era necessário para o dito paper, como recebemos uma verdadeira lição de vida, tal a diversidade de temas problematizados pelo historiador. Fiquei, naturalmente, extasiado com a sabedoria e a experiência de vida acumulada por VMG. Lembro-me que, até à data, só tinha experimentado tal sensação com as aulas de JBM. Agora, passava a dispor de duas referências que não mais largaria na minha actividade como investigador e professor.
Mas passemos agora à obra de VMG, numa análise necessariamente sumária e focada nas suas principais linhas de força, para usar uma linguagem tão cara a JBM. VMG foi responsável (e o seu mais destacado representante) pela introdução em Portugal da corrente historiográfica ligada à “História Nova”, por sua vez ancorada na revista Annales e nas posições de Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel. Para isso foi decisiva a sua estadia em França, a partir de 1947, tornando-se investigador do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, aqui permanecendo até 1960. Contactou então com os mais destacados historiadores franceses que impulsionaram a “História Nova” e publicou dois dos seus trabalhos mais importantes no domínio da história económica: Prix et Monnaies au Portugal, 1750-1850 (1955) e L’Économie de l’Empire Portugais (XV – XVI siècles), em 1959, sua dissertação de doctorat de État. Com a conclusão do doutoramento, VMG regressou a Portugal, ficando como professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, do qual seria afastado em 62. Voltou a França, entre 1971 e 1974, onde foi professor convidado da Universidade de Clermont-Ferrand. Depois do 25 de Abril regressou novamente ao seu país, desta vez para assumir a pasta da Educação e Cultura (1974). Foi director da Biblioteca Nacional (1984) e professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL, na qual atingiu a jubilação, em 1988, por limite de idade.
Durante estes anos publicou uma obra muito vasta e bastante variada, com escritos que vão da filosofia à cultura, da emigração à demografia, da história social à história económica, do ensino à investigação, da historiografia às comemorações. Não descurou os trabalhos de síntese e de divulgação, como é o caso de Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa (1971), dos muitos artigos que publicou na Revista de História Económica e Social, entre 1978 e 1989, ou mesmo dos Ensaios reunidos em 4 volumes (1968-1971).
Privilegiou duas temáticas: os Descobrimentos e as problemáticas com eles relacionados, e a teoria e metodologia da história e a historiografia. Sobre a primeira, destacamos o livro Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 2 volumes (1963-65), talvez a mais emblemática, fruto de um intenso e prolongado labor e reflexão e de um profundo conhecimento das fontes, arquivísticas e impressas, a que podemos juntar Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar. Séculos XIII – XVIII (1990), obra que traz alguns contributos importantes para o estudo da respectiva temática, embora a maior parte dos estudos nela insertos já tivesse sido publicada anteriormente. Da segunda temática são de realçar os artigos que publicou no Dicionário de História de Portugal, na RHES e no volume 3 dos Ensaios, Sobre a Teoria da História e Historiografia. No Dicionário analisou, por exemplo, a noção de “complexo histórico-geográfico”, que constitui um importante contributo, ao nível teórico e metodológico, dado por VMG à historiografia.
Em suma, VMG foi um grande historiador, talvez um dos mais importantes historiadores portugueses da segunda metade do século XX, com uma obra a todos os títulos notável e inovadora. Contribuiu, como poucos, para “democratizar” a história, ampliando as temáticas a investigar, procurando superar a história tradicional, de tendências erudita, política e factual. Teve, como discípulos, alguns daqueles que também viriam a salientar-se como historiadores de renome, como Jorge Borges de Macedo, Joaquim Barradas de Carvalho, José Gentil da Silva, Julião Soares de Azevedo, Joel Serrão e Artur Nobre de Gusmão.
Enfim, vai deixar muitas saudades, pois foi também um homem excepcional.
Wednesday, April 20, 2011
De Cuba, uma ligeira brisa de liberdade...
No Diário de Notícias de ontem, num artigo sobre “A Europa em desagregação”, Mário Soares lamentava o comportamento do BE e do PCP relativamente ao FMI: “Os partidos da esquerda radical – PCP e Bloco – auto-excluíram-se do jogo do poder. Nunca apreciaram o projecto europeu. São partidos de mero protesto. O eleitorado não percebe o que querem.” E perguntava, oportunamente: “Voltar ao PREC? No actual momento europeu e mundial? Não lhes basta o exemplo de Cuba, que tanto apreciaram sempre, o país mais triste e empobrecido da Ibero-América?”
Ora, é precisamente sobre Cuba que escrevo hoje. Acontece que, para grande desilusão dos bloquistas e comunistas indígenas, até Cuba está a mudar. Inspirada no modelo chinês, Cuba começa a dar os primeiros passos, embora tímidos, na direcção duma economia de mercado. No léxico oficial chamam-lhe “actualização do modelo” cubano.
No VI Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC), que decorreu em Havana nestes dias, começou-se pelo óbvio, isto é, pela constatação da falência do modelo socialista que impera naquelas ilhas, com a convocação da nova geração para “rectificar e mudar sem hesitar o que deve ser rectificado e mudado” (as palavras são de Fidel Castro). É claro que isto não é assumido publicamente, mas quer na retórica política do antigo líder cubano quer nas intervenções do seu sucessor, o irmão Raul Castro, lá descortinamos o reconhecimento de que a “Revolução dos humildes” pode ter os dias contados… O actual presidente fala mesmo na "última oportunidade" para a geração que fez a revolução "corrigir os erros do passado e acertar o rumo do país".
Feita esta espécie de “mea culpa”, ainda que encapotada, o dito congresso aprovou algumas reformas económicas e políticas que não deixarão de ter impacto na desagregação do actual sistema político cubano. No que toca às políticas, que tiveram como pano de fundo as revoltas no mundo árabe (não vá o diabo tecê-las), destaco o anúncio do limite do desempenho de cargos públicos a dois mandatos de 5 anos, visto pela imprensa internacional com um “passo histórico”. Com isto, coloca-se um ponto final na perpetuação no poder dos dirigentes políticos, a bem do “rejuvenescimento sistemático” do regime. Não menos importante, é a assumpção de que o sistema de partido único chegou ao fim. O próprio Raul Castro assumiu os erros do monopólio de uma só organização, neste caso do PCC. Esta abertura permitirá a breve trecho, julgo, a “legalização” da oposição e o aparecimento de novos partidos que refrescarão o actual panorama político com novas ideias e propostas.
Do ponto de vista económico é de realçar a “transferência” para o sector privado de 1,3 milhões de funcionários públicos (num país onde quatro quintos da população trabalha para o Estado), “sem pressas mas sem pausas” (quem diria!!!), a inevitável diminuição dos subsídios, a reforma da agricultura, a liberalização do mercado imobiliário e da compra e venda de carros, acabando com a respectiva legislação em vigor (bastante anacrónica), a expansão do sector privado através da distribuição de 200 mil licenças para trabalho por conta própria, e, por último, o fim gradual da “libreta”, a típica caderneta que permite que todos os cubanos, independentemente dos seus rendimentos, tenham acesso a bens públicos essenciais por preços mais reduzidos. A ideia, tal como já defendi no post “Mudar de vida é preciso”, visa aprofundar a descriminação positiva dos pagamentos de saúde e educação em função dos rendimentos. Como rematava Raul Castro, “Nenhum país ou pessoa pode gastar mais do que tem”. Lapidar, não?
Numa altura em que o liberalismo é vilipendiado por quase todos, como a causa da generalidade dos males do mundo, não deixa de ser paradoxal que Cuba, onde a falta de liberdade e direitos políticos é por demais evidente, caminhe precisamente para uma sociedade… mais liberal!!! Nestes conturbados tempos que correm, sabe bem esta ligeira brisa de liberdade vinda de Cuba…
PS. Dedico este post ao meu amigo Raul Rasga.
Ora, é precisamente sobre Cuba que escrevo hoje. Acontece que, para grande desilusão dos bloquistas e comunistas indígenas, até Cuba está a mudar. Inspirada no modelo chinês, Cuba começa a dar os primeiros passos, embora tímidos, na direcção duma economia de mercado. No léxico oficial chamam-lhe “actualização do modelo” cubano.
No VI Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC), que decorreu em Havana nestes dias, começou-se pelo óbvio, isto é, pela constatação da falência do modelo socialista que impera naquelas ilhas, com a convocação da nova geração para “rectificar e mudar sem hesitar o que deve ser rectificado e mudado” (as palavras são de Fidel Castro). É claro que isto não é assumido publicamente, mas quer na retórica política do antigo líder cubano quer nas intervenções do seu sucessor, o irmão Raul Castro, lá descortinamos o reconhecimento de que a “Revolução dos humildes” pode ter os dias contados… O actual presidente fala mesmo na "última oportunidade" para a geração que fez a revolução "corrigir os erros do passado e acertar o rumo do país".
Feita esta espécie de “mea culpa”, ainda que encapotada, o dito congresso aprovou algumas reformas económicas e políticas que não deixarão de ter impacto na desagregação do actual sistema político cubano. No que toca às políticas, que tiveram como pano de fundo as revoltas no mundo árabe (não vá o diabo tecê-las), destaco o anúncio do limite do desempenho de cargos públicos a dois mandatos de 5 anos, visto pela imprensa internacional com um “passo histórico”. Com isto, coloca-se um ponto final na perpetuação no poder dos dirigentes políticos, a bem do “rejuvenescimento sistemático” do regime. Não menos importante, é a assumpção de que o sistema de partido único chegou ao fim. O próprio Raul Castro assumiu os erros do monopólio de uma só organização, neste caso do PCC. Esta abertura permitirá a breve trecho, julgo, a “legalização” da oposição e o aparecimento de novos partidos que refrescarão o actual panorama político com novas ideias e propostas.
Do ponto de vista económico é de realçar a “transferência” para o sector privado de 1,3 milhões de funcionários públicos (num país onde quatro quintos da população trabalha para o Estado), “sem pressas mas sem pausas” (quem diria!!!), a inevitável diminuição dos subsídios, a reforma da agricultura, a liberalização do mercado imobiliário e da compra e venda de carros, acabando com a respectiva legislação em vigor (bastante anacrónica), a expansão do sector privado através da distribuição de 200 mil licenças para trabalho por conta própria, e, por último, o fim gradual da “libreta”, a típica caderneta que permite que todos os cubanos, independentemente dos seus rendimentos, tenham acesso a bens públicos essenciais por preços mais reduzidos. A ideia, tal como já defendi no post “Mudar de vida é preciso”, visa aprofundar a descriminação positiva dos pagamentos de saúde e educação em função dos rendimentos. Como rematava Raul Castro, “Nenhum país ou pessoa pode gastar mais do que tem”. Lapidar, não?
Numa altura em que o liberalismo é vilipendiado por quase todos, como a causa da generalidade dos males do mundo, não deixa de ser paradoxal que Cuba, onde a falta de liberdade e direitos políticos é por demais evidente, caminhe precisamente para uma sociedade… mais liberal!!! Nestes conturbados tempos que correm, sabe bem esta ligeira brisa de liberdade vinda de Cuba…
PS. Dedico este post ao meu amigo Raul Rasga.
Saturday, April 16, 2011
NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (5) - O pós-guerra...
No último post escrevi sobre a situação económica da I República até à entrada de Portugal na Grande Guerra. Neste debruçar-me-ei sobre o pós-guerra, ou melhor, sobre os efeitos devastadores do conflito militar e do vazio de poder criado com o assassinato de Sidónio Pais. Descontando algumas especificidades desta época, como o contexto da guerra, não deixamos de encontrar algumas semelhanças com a actualidade…
Portugal parece nesta altura uma nau à deriva perto do naufrágio. A sociedade está depauperada pela carestia, radicalizada pela política e esgotada pela balbúrdia, que dura há anos sem sinal de abrandamento. Os governos sucedem-se com uma média de 2 meses.
Do ponto de vista económico o país está de rastos. Portugal não recebe as esperadas indemnizações de guerra da Alemanha, com as quais planeava pagar as gigantescas dívidas à Inglaterra. A crise económica internacional agrava ainda mais as coisas: as remessas do Brasil, tradicional fonte de equilíbrio das contas nacionais, caem a pique. O sistema cambial desarticula-se e os preços sobem em flecha. Os comerciantes intensificam o açambarcamento e a especulação, práticas correntes durante a guerra.
A resposta do governo é pífia, com receio de novos levantamentos populares: em vez de impor a austeridade imprime mais dinheiro para acompanhar a subida dos preços, aumentando a circulação fiduciária e a desvalorização do escudo. Com excepção dos países derrotados, a Alemanha e a Áustria, Portugal é o país com a maior inflação da Europa. As notas são o único dinheiro em circulação; as moedas passam a estar amealhadas devido ao valor do metal, que depressa ultrapassa o seu valor facial. Ninguém deposita dinheiro em Portugal e todos o querem tirar dos bancos. A década termina com o espectro da fome desenhado como um fatalismo no horizonte.
Mas a crise do pós-guerra não afecta toda a gente do mesmo modo. Os comerciantes fazem fortunas com o açambarcamento e a especulação. Os importadores somam lucros rápidos com o comércio internacional, devido à falta de stocks. Os volframistas tornam-se milionários instantâneos minerando para a indústria de munições. Cresce sem precedentes o número de empresas de mercadorias, assim como as mercearias e os bancos. Como resultado de tudo isto surge uma nova classe social, os novos-ricos, objecto de muitas invejas e alvo predilecto dos caricaturistas, que os retratam arrivistas, broncos e sem maneiras.
Os que dependem de rendimentos fixos, os funcionários públicos e os jornaleiros rurais são os mais prejudicados pela crise económica. Pelo contrário, os operários mantêm intacto o seu poder reivindicativo, obtendo melhores regalias. O movimento sindical está mais forte do que nunca, o que explica o relançamento das greves a partir de 1919.
Como um mal nunca vem só, a peste pneumónica varre também Portugal, matando mais de 70.000 mil vidas. Para muitos a única solução é a emigração, que, depois da guerra, assume proporções bíblicas: Portugal perde 6,7% da sua população. Testemunha-o o escritor Raul Brandão: “No outro dia, em qualquer terriola do Douro, fecharam as portas e abalaram com as trouxas – homens, mulheres, velhos e crianças. E o padre, ao vê-los passar disse, num pasmo: Ah, vocês vão todos? Então esperem aí que eu também vou… E foi. Deu volta à chave da igreja e foi”.
Portugal parece nesta altura uma nau à deriva perto do naufrágio. A sociedade está depauperada pela carestia, radicalizada pela política e esgotada pela balbúrdia, que dura há anos sem sinal de abrandamento. Os governos sucedem-se com uma média de 2 meses.
Do ponto de vista económico o país está de rastos. Portugal não recebe as esperadas indemnizações de guerra da Alemanha, com as quais planeava pagar as gigantescas dívidas à Inglaterra. A crise económica internacional agrava ainda mais as coisas: as remessas do Brasil, tradicional fonte de equilíbrio das contas nacionais, caem a pique. O sistema cambial desarticula-se e os preços sobem em flecha. Os comerciantes intensificam o açambarcamento e a especulação, práticas correntes durante a guerra.
A resposta do governo é pífia, com receio de novos levantamentos populares: em vez de impor a austeridade imprime mais dinheiro para acompanhar a subida dos preços, aumentando a circulação fiduciária e a desvalorização do escudo. Com excepção dos países derrotados, a Alemanha e a Áustria, Portugal é o país com a maior inflação da Europa. As notas são o único dinheiro em circulação; as moedas passam a estar amealhadas devido ao valor do metal, que depressa ultrapassa o seu valor facial. Ninguém deposita dinheiro em Portugal e todos o querem tirar dos bancos. A década termina com o espectro da fome desenhado como um fatalismo no horizonte.
Mas a crise do pós-guerra não afecta toda a gente do mesmo modo. Os comerciantes fazem fortunas com o açambarcamento e a especulação. Os importadores somam lucros rápidos com o comércio internacional, devido à falta de stocks. Os volframistas tornam-se milionários instantâneos minerando para a indústria de munições. Cresce sem precedentes o número de empresas de mercadorias, assim como as mercearias e os bancos. Como resultado de tudo isto surge uma nova classe social, os novos-ricos, objecto de muitas invejas e alvo predilecto dos caricaturistas, que os retratam arrivistas, broncos e sem maneiras.
Os que dependem de rendimentos fixos, os funcionários públicos e os jornaleiros rurais são os mais prejudicados pela crise económica. Pelo contrário, os operários mantêm intacto o seu poder reivindicativo, obtendo melhores regalias. O movimento sindical está mais forte do que nunca, o que explica o relançamento das greves a partir de 1919.
Como um mal nunca vem só, a peste pneumónica varre também Portugal, matando mais de 70.000 mil vidas. Para muitos a única solução é a emigração, que, depois da guerra, assume proporções bíblicas: Portugal perde 6,7% da sua população. Testemunha-o o escritor Raul Brandão: “No outro dia, em qualquer terriola do Douro, fecharam as portas e abalaram com as trouxas – homens, mulheres, velhos e crianças. E o padre, ao vê-los passar disse, num pasmo: Ah, vocês vão todos? Então esperem aí que eu também vou… E foi. Deu volta à chave da igreja e foi”.
Wednesday, April 13, 2011
Crise, identidade nacional e elites (II)
Outro aspecto importante na reflexão de Jorge Borges de Macedo (JBM), que pode ser de grande utilidade para os Estados, prende-se com o receituário sugerido para os períodos ou situações de abrandamento e/ou crise da identidade nacional (como a que vivemos agora), o que passa pela análise das propostas à Nação no seu improvisado ou copiado, e pelo conhecimento do que somos e temos sido.
Entramos, aqui, portanto, na questão do papel das elites, entendidas como um conjunto de pessoas a quem recorremos para salvar a colectividade, na formulação de propostas válidas e exequíveis com vista à resolução dos problemas do território nacional, neste caso ajustadas à escala de uma pequena potência.
Por outras palavras, de que modo o escol actual tem usado os conceitos mais importantes da ciência e da cultura? A resposta passa naturalmente pela avaliação do seu papel nas situações de abrandamento ou crise da identidade nacional. Ora, nestas tem prevalecido sempre o geral, o abstracto, com manifesto desinteresse ou desconhecimento pela dimensão nacional. Como nos diz JBM, “só à custa dos próprios erros – e muito mais à nossa custa! – é que o economista encontra a dimensão nacional para as suas análises abstractas. Ora, é esse o elemento basilar onde a cultura nacional tem indispensável significado, mesmo para as ciências exactas: não se trata de as nacionalizar; trata-se de as dimensionar e de aprender a agregar os elementos específicos, isto é, que nos definem”.
O historiador alerta-nos aqui novamente para a importância do concreto, para o problema de escala e de conteúdo das “propostas apresentadas à Nação”: estas devem ser ajustadas à dimensão nacional, comportando, na sua formulação, sem dúvida alguma, o presente, mas também o passado, a experiência acumulada, “condição de verdade e de sucesso difícil”, porém uma exigência indispensável, facilitadora da própria acção da elite nacional.
Como nos lembra JBM “as nações são conjuntos concretos e espirituais”. É certo que não podem deixar de pretender o sucesso material das suas propostas e formas de ser, em face de outras propostas e formas possíveis, mas estas têm de ser adequadas à dimensão nacional.
As nações existem para receber dados gerais, mas existem sobretudo para criar a particularidade – o que para nós é uma grande vantagem, pois, segundo JBM, “o português tem uma verdadeira vocação de particularidade, sua forma de ser”. Substituíram-na, reconhece, no ensino e no discurso, por generalidades técnicas. Porém, a cultura portuguesa existe para promover a particularidade, para adequar e redimensionar as propostas de civilização, sempre gerais. É esta a sua função.
A ciência é universal e não existe para as nações. Resulta daqui que tem de existir cultura para proceder ao ajustamento da ciência/técnica à realidade nacional, para atingir a dimensão própria e possível, sempre que for caso disso. Em suma: “assimilar não é só compreender: é, sobretudo, adequar, dimensionar os conceitos, de outro modo sofismáveis”.
E esta é uma das principais tarefas das elites, desde que estas, como pessoas de qualidade a quem recorremos para salvar a colectividade, não se transformem em aristocracias. É fundamental que as elites permaneçam naquela categoria; é fundamental que cumpram o seu dever; é fundamental que defendam a nação. Como nos diz JBM, “se não esquecermos a responsabilidade, encontraremos as elites essenciais e teremos as aristocracias como circunstanciais”, com aquelas em vigilância crítica, acrescentamos. Como se vê o desafio é enorme e continua válido…
Entramos, aqui, portanto, na questão do papel das elites, entendidas como um conjunto de pessoas a quem recorremos para salvar a colectividade, na formulação de propostas válidas e exequíveis com vista à resolução dos problemas do território nacional, neste caso ajustadas à escala de uma pequena potência.
Por outras palavras, de que modo o escol actual tem usado os conceitos mais importantes da ciência e da cultura? A resposta passa naturalmente pela avaliação do seu papel nas situações de abrandamento ou crise da identidade nacional. Ora, nestas tem prevalecido sempre o geral, o abstracto, com manifesto desinteresse ou desconhecimento pela dimensão nacional. Como nos diz JBM, “só à custa dos próprios erros – e muito mais à nossa custa! – é que o economista encontra a dimensão nacional para as suas análises abstractas. Ora, é esse o elemento basilar onde a cultura nacional tem indispensável significado, mesmo para as ciências exactas: não se trata de as nacionalizar; trata-se de as dimensionar e de aprender a agregar os elementos específicos, isto é, que nos definem”.
O historiador alerta-nos aqui novamente para a importância do concreto, para o problema de escala e de conteúdo das “propostas apresentadas à Nação”: estas devem ser ajustadas à dimensão nacional, comportando, na sua formulação, sem dúvida alguma, o presente, mas também o passado, a experiência acumulada, “condição de verdade e de sucesso difícil”, porém uma exigência indispensável, facilitadora da própria acção da elite nacional.
Como nos lembra JBM “as nações são conjuntos concretos e espirituais”. É certo que não podem deixar de pretender o sucesso material das suas propostas e formas de ser, em face de outras propostas e formas possíveis, mas estas têm de ser adequadas à dimensão nacional.
As nações existem para receber dados gerais, mas existem sobretudo para criar a particularidade – o que para nós é uma grande vantagem, pois, segundo JBM, “o português tem uma verdadeira vocação de particularidade, sua forma de ser”. Substituíram-na, reconhece, no ensino e no discurso, por generalidades técnicas. Porém, a cultura portuguesa existe para promover a particularidade, para adequar e redimensionar as propostas de civilização, sempre gerais. É esta a sua função.
A ciência é universal e não existe para as nações. Resulta daqui que tem de existir cultura para proceder ao ajustamento da ciência/técnica à realidade nacional, para atingir a dimensão própria e possível, sempre que for caso disso. Em suma: “assimilar não é só compreender: é, sobretudo, adequar, dimensionar os conceitos, de outro modo sofismáveis”.
E esta é uma das principais tarefas das elites, desde que estas, como pessoas de qualidade a quem recorremos para salvar a colectividade, não se transformem em aristocracias. É fundamental que as elites permaneçam naquela categoria; é fundamental que cumpram o seu dever; é fundamental que defendam a nação. Como nos diz JBM, “se não esquecermos a responsabilidade, encontraremos as elites essenciais e teremos as aristocracias como circunstanciais”, com aquelas em vigilância crítica, acrescentamos. Como se vê o desafio é enorme e continua válido…
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Monday, April 11, 2011
Mudar de vida, é preciso...
De novo de mão estendida… Pois é, depois de 74 é a terceira vez que a ditosa pátria recorre à ajuda financeira externa. Desta vez não é directamente ao FMI, mas ao FEEF (Fundo Europeu de Estabilização Financeira), ainda que para este o FMI contribua com cerca de 25% do seu valor total (750 mil milhões de Euros). Estima-se que a ajuda a Portugal possa ir aos 90 mil milhões de Euros. Entretanto, o Dr. Cavaco pede “imaginação” na assistência financeira ao país (a desfaçatez, pelos vistos, é coisa sem limites em Belém), contribuindo para a cacofonia nacional, e deixando os dirigentes europeus à beira dum ataque de nervos… A reputação do país, já pelas ruas da amargura, agradece!!!
Mais do que apontar culpados (contrariamente a Vasco Pulido Valente, julgo que é um exercício fútil, pois as responsabilidades são de todos, Estado, bancos, empresas e famílias), importa perceber como chegámos até aqui. Desde logo, para não repetirmos os mesmos erros. A resposta parece-me simples: vivemos há muitos anos acima das nossas possibilidades. Por outras palavras, a riqueza criada foi/é manifestamente insuficiente para acudir às despesas. Logo, vai de contrair empréstimos. O problema não está em contrair empréstimos, pois todos os países o fazem. Os bancos estrangeiros fornecem fundos aos bancos nacionais que depois são canalizados para o crédito às empresas e indústrias. Até aqui, tudo bem. O problema está na “especificidade” portuguesa de contrair empréstimos: como não cria riqueza suficiente para pagá-los, contrai dívida para pagar dívida, num ciclo suicída sem fim à vista. Hoje, Portugal deve ao exterior quase 400 mil milhões de Euros (233% do PIB!!!). Desta dívida, 26% é do Estado, enquanto a dos bancos ronda os 55% do total. Além do crédito às empresas, a dívida dos bancos resulta, grosso modo, do crédito que disponibiliza para a compra de casa e de carros. Corolário lógico: as taxas de juro subiram para valores proibitivos (andaremos muitos anos a amortizar com o nosso trabalho a dívida externa portuguesa). Para termos uma ideia da dimensão do problema retenha-se que pouco falta para o Estado português estar a pagar por dívida a um ano o que não queria pagar a 10 anos (7%)!!!
Indissociável da subida dos juros foi a queda em espiral dos níveis de avaliação de risco de pagamento da dívida portuguesa, os célebres ratings, válido para a República como para os principais bancos e empresas públicas portuguesas. Foi a gota de água que faltava para o governo capitular a um pedido de ajuda externa. Esperam-nos, portanto, pelo menos “5 anos de austeridade, com mais impostos e menos protecção social” (título do DN, de 8 de Abril).
Com o FEEF e o FMI vem a receita já aplicada em 1977 e 1983: exceptuando a desvalorização da moeda, hoje impossível, teremos o inevitável aumento de impostos, cortes nos ordenados dos funcionários públicos(fala-se já no subsídio de férias e, depois, no de Natal), cortes nos investimentos públicos (não há TGV que resista), congelamento total de admissões na administração pública, entre outras. Resultará daqui, tal como naqueles anos, mais desemprego, salários em atraso, diminuição do poder de compra, subida dos preços dos bens essenciais, greves (já está marcada uma para 6 de Maio) e maior instabilidade social.
Mas será esta receita inevitável? Não haverá margem de negociação para outro acordo, com impactos menos negativos na vida das pessoas? Não estamos aqui perante uma oportunidade única para mudar radicalmente de estilo de vida? Para refundar Portugal com um novo modelo de desenvolvimento? Teremos lideranças políticas suficientemente fortes para protagonizar esta mudança tão necessária? Teremos mesmo que partir do ressuscitado PEC4 para negociarmos o apoio externo, como anunciou este fim-de-semana José Sócrates?
Julgo que não... Proponho, de seguida, algumas medidas que me parecem incontornáveis se queremos efectivamente "mudar de vida". Fico-me por 5, desde as mais simbólicas, com impactos pouco significativos (mas que poderão ter um efeito mobilizador na comunidade), até às mais estruturantes desse novo modelo de desenvolvimento, que considero fundamentais para um novo arranque económico.
SIMBÓLICAS:
- Redução do tamanho do Governo, quer em ministros, quer em secretários de Estado e sub-secretários de Estado, quer ainda em assessores: a fusão de alguns ministérios, com áreas de trabalho interligadas, poderá ser uma boa solução, para a sua eficiência, com a consequente diminuição daqueles cargos públicos (esta redução abrangeria ainda a administração central, com a extinção ou fusão das centenas de institutos públicos e fundações apoiadas pelo Estado);
- Redução do número de deputados na Assembleia da República, através duma reforma eleitoral que privilegie os círculos uninominais, aproximando os eleitores dos eleitos (estes passam a responder, e a ser avaliados, pelo seu círculo eleitoral e não pelas direcções partidárias);
- Redução do número de concelhos (os mais pequenos), e respectivas freguesias, através duma reforma administrativa do país, com a agregação dos concelhos extintos aos grandes concelhos limítrofes (veja-se o que se fez, com sucesso, em Lisboa, com a redução muito significativa do número de freguesias);
- Extinção da figura dos Governadores-Civis, e respectivo staff, provadamente sem grande finalidade;
- Eliminação de vez, no actual contexto, de qualquer possibilidade de Regionalização do país (a descentralização e a desconcentração de competências deve ser feita para os municípios e as freguesias, aproximando ainda mais a gestão da coisa pública das pessoas; na resolução de problemas extra-municipais, a associação entre municípios tem-se revelado operativa).
ESTRUTURANTES:
- Repensar a sério o papel do Estado, minimizando as suas funções à administração da justiça, segurança (nacional e local) e provisão de bens e serviços públicos (certas obras públicas, educação, saúde e segurança social: garantindo a liberdade de escolha na educação e na segurança social, e aprofundando a descriminação dos pagamentos de saúde em função dos rendimentos);
- Privatização, como resultado daquele exercício, de várias empresas públicas, dos transportes (TAP, CP, Refer, Carris, Metro de Lisboa e do Porto), passando pelos correios (CTT), empresas municipais (deviam ser todas extintas), até às empresas de comunicação (RTP, RTP 2, RTP N, RTP Internacional e rádios públicas);
- Regularização das contas públicas e reestruturação da dívida externa, pagando o que devemos lá fora, e pondo um ponto final na fama de caloteiros que já temos;
- Extinção das parcerias público-privadas, a ruína do Estado português (as PPP em curso vão custar, até 2050, cerca de 60 mil milhões de Euros, mais de metade da ajuda financeira agora solicitada, ou, se preferirem, cerca de um terço do PIB; verba astronómica que pesará todos os anos nas contas do Estado e que será suportada pelas gerações mais novas, incluindo a que está à rasca, e que vai ficar mais à rasca, e, pasme-se, incluindo os portugueses que nem sequer nasceram – nada como preparar o futuro!!!);
- Liberalização do mercado de trabalho (atenuando a protecção demasiado elevada nos contratos sem termo para, desta forma, estancar a alimentação do dualismo actualmente em vigor no nosso mercado de trabalho: os mais velhos estão sempre mais protegidos que os mais jovens) e diminuição, assim que possível, dos impostos, visando a captação de investimento nacional e estrangeiro.
Os dados estão lançados…
Mais do que apontar culpados (contrariamente a Vasco Pulido Valente, julgo que é um exercício fútil, pois as responsabilidades são de todos, Estado, bancos, empresas e famílias), importa perceber como chegámos até aqui. Desde logo, para não repetirmos os mesmos erros. A resposta parece-me simples: vivemos há muitos anos acima das nossas possibilidades. Por outras palavras, a riqueza criada foi/é manifestamente insuficiente para acudir às despesas. Logo, vai de contrair empréstimos. O problema não está em contrair empréstimos, pois todos os países o fazem. Os bancos estrangeiros fornecem fundos aos bancos nacionais que depois são canalizados para o crédito às empresas e indústrias. Até aqui, tudo bem. O problema está na “especificidade” portuguesa de contrair empréstimos: como não cria riqueza suficiente para pagá-los, contrai dívida para pagar dívida, num ciclo suicída sem fim à vista. Hoje, Portugal deve ao exterior quase 400 mil milhões de Euros (233% do PIB!!!). Desta dívida, 26% é do Estado, enquanto a dos bancos ronda os 55% do total. Além do crédito às empresas, a dívida dos bancos resulta, grosso modo, do crédito que disponibiliza para a compra de casa e de carros. Corolário lógico: as taxas de juro subiram para valores proibitivos (andaremos muitos anos a amortizar com o nosso trabalho a dívida externa portuguesa). Para termos uma ideia da dimensão do problema retenha-se que pouco falta para o Estado português estar a pagar por dívida a um ano o que não queria pagar a 10 anos (7%)!!!
Indissociável da subida dos juros foi a queda em espiral dos níveis de avaliação de risco de pagamento da dívida portuguesa, os célebres ratings, válido para a República como para os principais bancos e empresas públicas portuguesas. Foi a gota de água que faltava para o governo capitular a um pedido de ajuda externa. Esperam-nos, portanto, pelo menos “5 anos de austeridade, com mais impostos e menos protecção social” (título do DN, de 8 de Abril).
Com o FEEF e o FMI vem a receita já aplicada em 1977 e 1983: exceptuando a desvalorização da moeda, hoje impossível, teremos o inevitável aumento de impostos, cortes nos ordenados dos funcionários públicos(fala-se já no subsídio de férias e, depois, no de Natal), cortes nos investimentos públicos (não há TGV que resista), congelamento total de admissões na administração pública, entre outras. Resultará daqui, tal como naqueles anos, mais desemprego, salários em atraso, diminuição do poder de compra, subida dos preços dos bens essenciais, greves (já está marcada uma para 6 de Maio) e maior instabilidade social.
Mas será esta receita inevitável? Não haverá margem de negociação para outro acordo, com impactos menos negativos na vida das pessoas? Não estamos aqui perante uma oportunidade única para mudar radicalmente de estilo de vida? Para refundar Portugal com um novo modelo de desenvolvimento? Teremos lideranças políticas suficientemente fortes para protagonizar esta mudança tão necessária? Teremos mesmo que partir do ressuscitado PEC4 para negociarmos o apoio externo, como anunciou este fim-de-semana José Sócrates?
Julgo que não... Proponho, de seguida, algumas medidas que me parecem incontornáveis se queremos efectivamente "mudar de vida". Fico-me por 5, desde as mais simbólicas, com impactos pouco significativos (mas que poderão ter um efeito mobilizador na comunidade), até às mais estruturantes desse novo modelo de desenvolvimento, que considero fundamentais para um novo arranque económico.
SIMBÓLICAS:
- Redução do tamanho do Governo, quer em ministros, quer em secretários de Estado e sub-secretários de Estado, quer ainda em assessores: a fusão de alguns ministérios, com áreas de trabalho interligadas, poderá ser uma boa solução, para a sua eficiência, com a consequente diminuição daqueles cargos públicos (esta redução abrangeria ainda a administração central, com a extinção ou fusão das centenas de institutos públicos e fundações apoiadas pelo Estado);
- Redução do número de deputados na Assembleia da República, através duma reforma eleitoral que privilegie os círculos uninominais, aproximando os eleitores dos eleitos (estes passam a responder, e a ser avaliados, pelo seu círculo eleitoral e não pelas direcções partidárias);
- Redução do número de concelhos (os mais pequenos), e respectivas freguesias, através duma reforma administrativa do país, com a agregação dos concelhos extintos aos grandes concelhos limítrofes (veja-se o que se fez, com sucesso, em Lisboa, com a redução muito significativa do número de freguesias);
- Extinção da figura dos Governadores-Civis, e respectivo staff, provadamente sem grande finalidade;
- Eliminação de vez, no actual contexto, de qualquer possibilidade de Regionalização do país (a descentralização e a desconcentração de competências deve ser feita para os municípios e as freguesias, aproximando ainda mais a gestão da coisa pública das pessoas; na resolução de problemas extra-municipais, a associação entre municípios tem-se revelado operativa).
ESTRUTURANTES:
- Repensar a sério o papel do Estado, minimizando as suas funções à administração da justiça, segurança (nacional e local) e provisão de bens e serviços públicos (certas obras públicas, educação, saúde e segurança social: garantindo a liberdade de escolha na educação e na segurança social, e aprofundando a descriminação dos pagamentos de saúde em função dos rendimentos);
- Privatização, como resultado daquele exercício, de várias empresas públicas, dos transportes (TAP, CP, Refer, Carris, Metro de Lisboa e do Porto), passando pelos correios (CTT), empresas municipais (deviam ser todas extintas), até às empresas de comunicação (RTP, RTP 2, RTP N, RTP Internacional e rádios públicas);
- Regularização das contas públicas e reestruturação da dívida externa, pagando o que devemos lá fora, e pondo um ponto final na fama de caloteiros que já temos;
- Extinção das parcerias público-privadas, a ruína do Estado português (as PPP em curso vão custar, até 2050, cerca de 60 mil milhões de Euros, mais de metade da ajuda financeira agora solicitada, ou, se preferirem, cerca de um terço do PIB; verba astronómica que pesará todos os anos nas contas do Estado e que será suportada pelas gerações mais novas, incluindo a que está à rasca, e que vai ficar mais à rasca, e, pasme-se, incluindo os portugueses que nem sequer nasceram – nada como preparar o futuro!!!);
- Liberalização do mercado de trabalho (atenuando a protecção demasiado elevada nos contratos sem termo para, desta forma, estancar a alimentação do dualismo actualmente em vigor no nosso mercado de trabalho: os mais velhos estão sempre mais protegidos que os mais jovens) e diminuição, assim que possível, dos impostos, visando a captação de investimento nacional e estrangeiro.
Os dados estão lançados…
Saturday, April 9, 2011
NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (4) - A modernização falhada...
Portugal vive hoje uma das piores crises económicas de sempre, com o desemprego num nível histórico, próximo dos 11%. Há cem anos atrás, qual era a situação? O novo poder saído da revolução de 5 de Outubro promete recuperar o atraso nacional, colocar Portugal num lugar tão avançado como a Europa além-Pirinéus.
Mas, nos primeiros 10 anos não se vive qualquer explosão de desenvolvimento, nem qualquer surto de progresso que não resulte da natural extensão do que já antes estava em curso. Não se assiste sequer ao lançamento de um grande projecto de obras públicas. A única excepção é o início da construção, no fim do decénio, dos bairros sociais do Arco do Cego e da Ajuda, em Lisboa, mais por imposição do movimento operário do que por planificação governamental.
Para este quadro também contribuiu a crença no liberalismo e na iniciativa individual: os primeiros responsáveis republicanos advogam um Estado pouco interventor, razão que explica a ausência de projectos de equipamento público ou leis de segurança social. Depois interpõem-se as guerrilhas partidárias. E por fim surge a Guerra. Não há pois tempo para pensar o desenvolvimento, entregue à acção espontânea da sociedade.
O desenvolvimento que se verifica, não sendo espectacular, é apesar de tudo consistente e sustentado nas seguintes actividades:
- nos aumentos verificados nos circuitos dos transportes e das comunicações: nos transportes destaca-se o comboio, cada vez mais usado (só na CP, de 1908 a 1913, o movimento de passageiros aumenta de quase 8 milhões para cerca de 10 milhões, e o de mercadorias de menos de 1,5 para mais de 1,8 toneladas); outro meio de transporte em rápido crescimento é o veículo motorizado: ao longo destes 10 anos, o número de automóveis em circulação nas deficientes estradas portuguesas aumenta seis vezes (surpreendentemente, o Porto é em 1912/13 a cidade europeia com mais índice de automóveis por mil habitantes); nas comunicações, a novidade é a telegrafia sem fios, que o governo instala a partir de 1912; o telefone, embora espalhando-se cada vez mais, continua a ser um luxo de poucos;
- nos aumentos no consumo de energia eléctrica, notórios na cidade de Lisboa;
- na expansão da construção civil (entre 1912 e 1914 surgem 150 mil novos prédios) e no crescimento das importações de carvão e algodão em bruto, denunciando prosperidade industrial;
- no aumento das exportações de cortiça, conservas de sardinha e vinho do porto.
A Guerra, com as suas necessidades de abastecimento e o seu simultâneo proteccionismo económico, traz consigo outro surto de crescimento industrial, sobretudo no sector químico, nos cimentos, no têxtil, no calçado, nas moagens e nas conservas de peixe, apesar das dificuldades de transporte, dos custos das matérias-primas e das reivindicações sociais. São sectores de utilização intensiva de mão-de-obra, o que leva a um crescimento considerável do operariado, constituído em grande parte por mulheres, crianças e adolescentes (representam cerca de 50% dos 142 mil indivíduos estimados para 1917).
Verifica-se também um aumento significativo do número de instalações fabris, que em 1917 é de 8425 unidades, o dobro de 1911. A actividade produtiva permanece na maior parte repartida por estabelecimentos artesanais, oficinas e pequenas fábricas.
O abismo entre os programas políticos e a realidade permanece.
PS. O desenho é de Alfredo Cândido, dado à estampa na revista Amanhã, de 1 de Março de 1922.
Mas, nos primeiros 10 anos não se vive qualquer explosão de desenvolvimento, nem qualquer surto de progresso que não resulte da natural extensão do que já antes estava em curso. Não se assiste sequer ao lançamento de um grande projecto de obras públicas. A única excepção é o início da construção, no fim do decénio, dos bairros sociais do Arco do Cego e da Ajuda, em Lisboa, mais por imposição do movimento operário do que por planificação governamental.
Para este quadro também contribuiu a crença no liberalismo e na iniciativa individual: os primeiros responsáveis republicanos advogam um Estado pouco interventor, razão que explica a ausência de projectos de equipamento público ou leis de segurança social. Depois interpõem-se as guerrilhas partidárias. E por fim surge a Guerra. Não há pois tempo para pensar o desenvolvimento, entregue à acção espontânea da sociedade.
O desenvolvimento que se verifica, não sendo espectacular, é apesar de tudo consistente e sustentado nas seguintes actividades:
- nos aumentos verificados nos circuitos dos transportes e das comunicações: nos transportes destaca-se o comboio, cada vez mais usado (só na CP, de 1908 a 1913, o movimento de passageiros aumenta de quase 8 milhões para cerca de 10 milhões, e o de mercadorias de menos de 1,5 para mais de 1,8 toneladas); outro meio de transporte em rápido crescimento é o veículo motorizado: ao longo destes 10 anos, o número de automóveis em circulação nas deficientes estradas portuguesas aumenta seis vezes (surpreendentemente, o Porto é em 1912/13 a cidade europeia com mais índice de automóveis por mil habitantes); nas comunicações, a novidade é a telegrafia sem fios, que o governo instala a partir de 1912; o telefone, embora espalhando-se cada vez mais, continua a ser um luxo de poucos;
- nos aumentos no consumo de energia eléctrica, notórios na cidade de Lisboa;
- na expansão da construção civil (entre 1912 e 1914 surgem 150 mil novos prédios) e no crescimento das importações de carvão e algodão em bruto, denunciando prosperidade industrial;
- no aumento das exportações de cortiça, conservas de sardinha e vinho do porto.
A Guerra, com as suas necessidades de abastecimento e o seu simultâneo proteccionismo económico, traz consigo outro surto de crescimento industrial, sobretudo no sector químico, nos cimentos, no têxtil, no calçado, nas moagens e nas conservas de peixe, apesar das dificuldades de transporte, dos custos das matérias-primas e das reivindicações sociais. São sectores de utilização intensiva de mão-de-obra, o que leva a um crescimento considerável do operariado, constituído em grande parte por mulheres, crianças e adolescentes (representam cerca de 50% dos 142 mil indivíduos estimados para 1917).
Verifica-se também um aumento significativo do número de instalações fabris, que em 1917 é de 8425 unidades, o dobro de 1911. A actividade produtiva permanece na maior parte repartida por estabelecimentos artesanais, oficinas e pequenas fábricas.
O abismo entre os programas políticos e a realidade permanece.
PS. O desenho é de Alfredo Cândido, dado à estampa na revista Amanhã, de 1 de Março de 1922.
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Wednesday, April 6, 2011
Crise, identidade nacional e elites (I)
Acabo de reler um texto que, julgo, poderá ser de grande utilidade na percepção da actual crise portuguesa (e europeia): refiro-me a “Não temos o direito de desistir”, de Jorge Borges Macedo (nada como relembrar o “velho” mestre), publicado na revista Prelo, N.º 1 (Out./Nov. 1983). Tentarei testar alguns dos conceitos propostos por ele, aplicando-os ao actual contexto político e económico, que é dramático [na altura em que escrevia este texto fui confrontado com o pedido de ajuda externa do Estado português, o terceiro em quase quarenta anos de Democracia!!!].
JBM reflecte sobre o problema da identidade nacional, e sobre o papel das elites. Tratarei, neste post, apenas do primeiro, reservando para um segundo post a questão das elites. O que entende JBM por identidade nacional? Nada como citá-lo: “Entendo por identidade nacional uma coincidência mínima dos comportamentos, na percepção de que os problemas que é necessário enfrentar se especificam no conjunto nacional e na certeza de que os projectos de vida colectiva se vão desenvolver no sentido de serem vividos, aplicados e verificados em comum”.
Coincidência mínima de comportamentos, problemas e projectos. Seria importante que as actuais lideranças políticas interiorizassem, desde logo, o conceito de identidade nacional (é certo que ele não pode estar desligado da Europa, mas esta só faz sentido enquanto “Pátria da diversidade”, como Europa das Nações); depois, que identificassem com rigor os tais problemas “que é necessário enfrentar” (tarefa que não se avizinha muito difícil, face à quantidade de diagnósticos traçados, internos e externos); por último, pensar e executar projectos adequados para alavancar o país, mas “vividos, aplicados e verificados em comum”. Isto é, os projectos não podem dispensar o contributo e a participação activa da comunidade.
Impregnando a identidade nacional – que precisa envolver um conceito presente – encontra-se o contexto insubstituível do passado, repositório das dificuldades e das soluções já concebidas. O passado dá assim legitimidade ao conceito de identidade nacional. Esta torna-se, consequentemente, a consciência pública e comunicada da nação, na sua história, na sua cultura, no seu território e na missão que o país desempenhou ou desempenha. Logo, qualquer estratégia nacional, virada naturalmente para o presente e o futuro, deve contemplar igualmente a experiência política, económica, social e cultural acumulada pelo país. Esta será um precioso auxílio na definição duma estratégia nacional operativa.
Mas para JBM a identidade nacional não tem só conteúdo nacional-discursivo, mas também uma “expressão espiritual e subconsciente que se ajusta – humanizando-se – às diversas tecnologias, sistemas e formas de governo e dissolve as persuasões ideológicas que se lhe opõem”. A identidade nacional ganha, portanto, uma dupla componente: ela é, simultaneamente, uma vivência e um projecto.
Definido o conceito JBM vai depois ocupar-se das especificidades da identidade nacional, com algumas advertências, não menos importantes, a saber: 1.ª A força da identidade nacional não é constante ao longo da história nacional (vivemos actualmente um período de “abrandamento” ou mesmo de crise da identidade nacional); 2.ª Esta força não é sempre igual em todos os grupos e organismos sociais, embora seja, em todos eles, “um elemento essencial que dá ordem e sentido à resposta portuguesa que tem acabado por vencer” (que grupos hoje protagonizam esta força?); 3.ª A identidade nacional “não é um elixir ou um conjunto automático de soluções”; pelo contrário, “é um guia, um conselho, uma esperança, uma exigência de pensar, não vá supor-se que as soluções se deduzem no processo das ideologias”.
As soluções requerem, antes, debates, propostas em confronto, choques de variável dureza, até se encontrar e adquirir força de aplicação. Processo que segundo JBM nos permite conservar a unidade e espírito nacional. Continuaremos…
JBM reflecte sobre o problema da identidade nacional, e sobre o papel das elites. Tratarei, neste post, apenas do primeiro, reservando para um segundo post a questão das elites. O que entende JBM por identidade nacional? Nada como citá-lo: “Entendo por identidade nacional uma coincidência mínima dos comportamentos, na percepção de que os problemas que é necessário enfrentar se especificam no conjunto nacional e na certeza de que os projectos de vida colectiva se vão desenvolver no sentido de serem vividos, aplicados e verificados em comum”.
Coincidência mínima de comportamentos, problemas e projectos. Seria importante que as actuais lideranças políticas interiorizassem, desde logo, o conceito de identidade nacional (é certo que ele não pode estar desligado da Europa, mas esta só faz sentido enquanto “Pátria da diversidade”, como Europa das Nações); depois, que identificassem com rigor os tais problemas “que é necessário enfrentar” (tarefa que não se avizinha muito difícil, face à quantidade de diagnósticos traçados, internos e externos); por último, pensar e executar projectos adequados para alavancar o país, mas “vividos, aplicados e verificados em comum”. Isto é, os projectos não podem dispensar o contributo e a participação activa da comunidade.
Impregnando a identidade nacional – que precisa envolver um conceito presente – encontra-se o contexto insubstituível do passado, repositório das dificuldades e das soluções já concebidas. O passado dá assim legitimidade ao conceito de identidade nacional. Esta torna-se, consequentemente, a consciência pública e comunicada da nação, na sua história, na sua cultura, no seu território e na missão que o país desempenhou ou desempenha. Logo, qualquer estratégia nacional, virada naturalmente para o presente e o futuro, deve contemplar igualmente a experiência política, económica, social e cultural acumulada pelo país. Esta será um precioso auxílio na definição duma estratégia nacional operativa.
Mas para JBM a identidade nacional não tem só conteúdo nacional-discursivo, mas também uma “expressão espiritual e subconsciente que se ajusta – humanizando-se – às diversas tecnologias, sistemas e formas de governo e dissolve as persuasões ideológicas que se lhe opõem”. A identidade nacional ganha, portanto, uma dupla componente: ela é, simultaneamente, uma vivência e um projecto.
Definido o conceito JBM vai depois ocupar-se das especificidades da identidade nacional, com algumas advertências, não menos importantes, a saber: 1.ª A força da identidade nacional não é constante ao longo da história nacional (vivemos actualmente um período de “abrandamento” ou mesmo de crise da identidade nacional); 2.ª Esta força não é sempre igual em todos os grupos e organismos sociais, embora seja, em todos eles, “um elemento essencial que dá ordem e sentido à resposta portuguesa que tem acabado por vencer” (que grupos hoje protagonizam esta força?); 3.ª A identidade nacional “não é um elixir ou um conjunto automático de soluções”; pelo contrário, “é um guia, um conselho, uma esperança, uma exigência de pensar, não vá supor-se que as soluções se deduzem no processo das ideologias”.
As soluções requerem, antes, debates, propostas em confronto, choques de variável dureza, até se encontrar e adquirir força de aplicação. Processo que segundo JBM nos permite conservar a unidade e espírito nacional. Continuaremos…
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Monday, April 4, 2011
NOVAS PÁGINAS DA REPÚBLICA (3) - A crise financeira e económica...
Numa das edições do Público, Vasco Pulido Valente escreveu: “(…) a dívida directa do Estado está hoje em 147 mil milhões de Euros, 90% do PIB (quando devia ser no máximo de 60%). Os peritos falam em recessão e numa intervenção eminente do FMI”.
Há 100 anos atrás a situação não era nada melhor. Portugal vivia também uma grave crise financeira e económica, que se agravaria nos anos 20. A inflação era galopante: o pão era nove vezes mais caro, a carne quinze vezes, o azeite e as batatas vinte e duas vezes e o carvão dez vezes, comparando com os valores anteriores à Guerra. Em relação a 1914, a inflação em 1923 era de 1720%. A maior nota de 1914, a de 100$00, valia um quinto desse valor em 1920. O governo criou então a nota de 1000$00 (coisa que em 2011 não pode fazer), nota que quatro anos depois valerá apenas 40$00 dos de 1914.
A causa desta inflação galopante estava na escassez de bens essenciais do pós-guerra e do fabrico descontrolado de notas, única forma imaginada para se financiar a dívida pública nestes anos difíceis (hoje, recorre-se ao endividamento externo; aliás, já se contrai dívida para amortizar dívida, pelo que levaremos muitos anos até nos libertamos da pressão dos mercados financeiros!!!). O escudo desvaloriza-se mais depressa do que o ritmo a que se consegue fabricar notas, e a espiral parece não ter fim.
A par da crise financeira, a crise económica era agravada pela diminuição das remessas dos emigrantes e pelo fim da ajuda inglesa à participação na Guerra. A dívida do Estado, que em 1918 era inferior a 1 milhão de contos, ultrapassa despreocupadamente os 8 milhões em 1924, pulverizando o sonho de um orçamento equilibrado que Afonso Costa ainda concretizou. Com a queda cambial, o valor das exportações foi três vezes menor que o das importações entre os anos de 1922 e 1927.
O entesouramento das moedas continua, que refundidas por particulares rendem acima do valor do seu rosto: em 1925, 99% das transacções eram feitas, não em metal mas em papel. Desaparecidas as moedas, as casas comerciais passam a emitir talões para os trocos, que aceitarão de volta em pagamento. Todo o país vive à custa deste dinheiro espontâneo, improvisado em farrapos de papel ou discos de lata, impressos, dactilografados ou apenas manuscritos, com ou sem carimbo ou assinatura. A fuga de capitais, das grandes fortunas ou dos novos-ricos, atinge valores astronómicos em 1920-1921.
A bancarrota nacional era então profetizada por reputados economistas, que viam o país afundado num cenário de catástrofe irreversível. Mas, paradoxalmente, havia um reverso desta moeda quase falida: a inflação, tornando mais competitiva a indústria nacional, acabou por beneficiar os sectores produtivos, tanto do lado patronal como do lado operário. A desvalorização protege o mercado interno e colonial, produzindo a expansão dos têxteis, da alimentação, da indústria química, do cimento ou do tabaco. Os sacrificados foram as classes médias que viviam do comércio, ameaçadas pela proletarização e o desemprego, os funcionários, os militares, os pensionistas, e toda a gente que dependia de rendimentos fixos – estava criado o caldo para a afirmação de ideologias radicais, à esquerda ou à direita, que poriam fim a 16 anos de República…
PS. O desenho é de Stuart Carvalhaes, e saiu n'O Século Cómico, de 18 de Dezembro de 1920.
Há 100 anos atrás a situação não era nada melhor. Portugal vivia também uma grave crise financeira e económica, que se agravaria nos anos 20. A inflação era galopante: o pão era nove vezes mais caro, a carne quinze vezes, o azeite e as batatas vinte e duas vezes e o carvão dez vezes, comparando com os valores anteriores à Guerra. Em relação a 1914, a inflação em 1923 era de 1720%. A maior nota de 1914, a de 100$00, valia um quinto desse valor em 1920. O governo criou então a nota de 1000$00 (coisa que em 2011 não pode fazer), nota que quatro anos depois valerá apenas 40$00 dos de 1914.
A causa desta inflação galopante estava na escassez de bens essenciais do pós-guerra e do fabrico descontrolado de notas, única forma imaginada para se financiar a dívida pública nestes anos difíceis (hoje, recorre-se ao endividamento externo; aliás, já se contrai dívida para amortizar dívida, pelo que levaremos muitos anos até nos libertamos da pressão dos mercados financeiros!!!). O escudo desvaloriza-se mais depressa do que o ritmo a que se consegue fabricar notas, e a espiral parece não ter fim.
A par da crise financeira, a crise económica era agravada pela diminuição das remessas dos emigrantes e pelo fim da ajuda inglesa à participação na Guerra. A dívida do Estado, que em 1918 era inferior a 1 milhão de contos, ultrapassa despreocupadamente os 8 milhões em 1924, pulverizando o sonho de um orçamento equilibrado que Afonso Costa ainda concretizou. Com a queda cambial, o valor das exportações foi três vezes menor que o das importações entre os anos de 1922 e 1927.
O entesouramento das moedas continua, que refundidas por particulares rendem acima do valor do seu rosto: em 1925, 99% das transacções eram feitas, não em metal mas em papel. Desaparecidas as moedas, as casas comerciais passam a emitir talões para os trocos, que aceitarão de volta em pagamento. Todo o país vive à custa deste dinheiro espontâneo, improvisado em farrapos de papel ou discos de lata, impressos, dactilografados ou apenas manuscritos, com ou sem carimbo ou assinatura. A fuga de capitais, das grandes fortunas ou dos novos-ricos, atinge valores astronómicos em 1920-1921.
A bancarrota nacional era então profetizada por reputados economistas, que viam o país afundado num cenário de catástrofe irreversível. Mas, paradoxalmente, havia um reverso desta moeda quase falida: a inflação, tornando mais competitiva a indústria nacional, acabou por beneficiar os sectores produtivos, tanto do lado patronal como do lado operário. A desvalorização protege o mercado interno e colonial, produzindo a expansão dos têxteis, da alimentação, da indústria química, do cimento ou do tabaco. Os sacrificados foram as classes médias que viviam do comércio, ameaçadas pela proletarização e o desemprego, os funcionários, os militares, os pensionistas, e toda a gente que dependia de rendimentos fixos – estava criado o caldo para a afirmação de ideologias radicais, à esquerda ou à direita, que poriam fim a 16 anos de República…
PS. O desenho é de Stuart Carvalhaes, e saiu n'O Século Cómico, de 18 de Dezembro de 1920.
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