Tuesday, May 10, 2011

Um dia humilhante...

A falta de tempo impediu-me de escrever sobre o anúncio que a troika fez na passada quinta-feira (5 de Maio), no Centro Jean Monnet, em Lisboa. Não sobre as medidas draconianas que foram apresentadas para endireitar o país, mas sobre um pequeno aspecto que passou (quase) despercebido à generalidade dos portugueses – pelo menos a fazer fé no que a seguir a comunicação social disse sobre o assunto, na globalidade da opinião publicada e mesmo na atitude geral perante aquele anúncio.

Ora, esse pequeno aspecto tem a ver com o atestado público de incompetência que foi passado a Portugal e, naturalmente, a quem nos governou nos últimos anos. Mas esse atestado de incompetência acaba também por ser dirigido a todos, sem qualquer subtileza: aos outros partidos políticos, a economistas, a gestores, a sindicalistas, a funcionários públicos, a académicos, enfim, a todos os portugueses, pois não soubemos pôr em prática as reformas estruturais agora tão necessárias.

A imposição daquelas medidas é uma derrota para Portugal, em toda a linha. E é uma derrota humilhante, de que devíamos sentir uma profunda vergonha: alguns iluminados, do BCE, do FMI e da UE aterram aqui, recolhem uns dados, durante um mês, e depois, com a maior sobranceria, explicam como se deve governar um país, a troco da ajuda financeira. Se querem dinheiro, então é assim que a coisa deve ser feita…

Mas isto foi encarado com a maior naturalidade, não despertando qualquer sobressalto nacional. Fomos até sossegados, com a maior desfaçatez, de que se trata de um bom acordo, que não há que ter medo, que não nos vão cortar os subsídios de férias e de Natal, e que tudo vai correr bem. Como era de esperar ninguém assumiu responsabilidades, ninguém reflectiu sobre o significado daquele dia, procurando, antes, qualquer vitória eleitoral nas medidas que iam sendo lançadas.

Entretidos na espuma dos dias, anestesiados com as horas infindáveis de programas sobre futebol e novelas, embrutecidos com os “Perdidos na Tribo”, o “Último a sair”, o “Peso Pesado” e afins, com um debate político que vive de sound bites, inócuo, sem substância, não “inscrevemos” um dia que ficará para a história como um dos dias mais humilhantes que vivemos. Proponho, para remediar isto, que o dia 5 de Maio seja elevado à triste categoria de dia de luto nacional, para não esquecer.

A 11 de Janeiro de 1890, para lembrar outro dia de humilhação nacional, quando os nossos velhos aliados ingleses fizeram um Ultimato a Portugal, que colocou um ponto final no ambicionado mapa cor-de-rosa em África, a indignação foi geral e fez cair governos. O Ultimato foi mesmo o primeiro momento de um processo de mudança que se iniciou no final do século XIX. Nunca, como no polémico ano de 1890, houve tanta discussão acerca da necessidade de uma “ideia colectiva”, de organizar os portugueses à volta da comunhão com a pátria e as coisas portuguesas. Cento e vinte anos depois, o que temos? Um vazio, como que vegetando na indiferença geral.

É por isso que um texto como aquele que José Pacheco Pereira escreveu no Público de sábado, de 7 de Maio, “Um dia estranho”, devia ser lido por todos, relido as vezes que fossem necessárias, discutido até à exaustão, nos jornais, nas rádios, nas televisões, nas escolas e nas universidades, emoldurado nas nossas casas, para nunca mais ser esquecido. JPP foi dos poucos a pôr o dedo na ferida, com a lucidez do costume. Dos poucos a indignar-se contra a falta de forças para a mudança, contra o “conservadorismo da indiferença que impera” nesta pátria tão mal tratada.

Nada como citá-lo: “Este foi um dia estranho. Mais estranho ainda porque a sua estranheza passa despercebida a muita gente. Estamos como que anestesiados, passados, adormecidos, atordoados, escolham o termo. No dia em que escrevo, passaram 24 horas sobre saber-se quem governa Portugal nos próximos 3 anos. E não somos nós, nem quem escolhemos, nem quem vamos escolher. São “eles”, um deles de olhos azuis, como diz a comunicação social com o seu gosto pela trivialidade, direitinhos, capazes, sóbrios, eficazes, “eles”. Isto é natural? Não é. E também não é natural que achemos com tanta felicidade que o é.”

E continua: “Os nossos novos governantes, altos burocratas internacionais, (…) dedicaram um dia a fazer conferências de imprensa e a dar entrevistas. Ninguém acha mal, estranho, bizarro, que burocratas, funcionários, sem qualquer legitimidade democrática, apareçam a dizer o que devemos fazer e a comentar com displicência o que fizemos ou não fizemos. Os patrões deles nem sequer se dignaram aparecer. Tinha sido melhor. A senhora Merkel sempre foi eleita pelos alemães, aqueles ministros franceses, holandeses, finlandeses, sempre têm que ir a votos explicar o que fazem aos seus povos, e como estão a gastar o dinheiro dos seus impostos, e por isso podem dar-nos lições e ralhetes. Seria melhor, mas nem isso já merecemos, porque achamos bem que o funcionalismo europeu, os burocratas de Bruxelas, dêem conferências de imprensa muito para além do seu mandato e do seu poder. Ah!, o estado de necessidade faz engolir a vergonha!”

Mais do que um dia estranho foi, repito, um dia humilhante, que importa não esquecer, jamais; um dia que devia ser “inscrito” no nosso ADN, mas que o não foi, mergulhados que estamos no inconformismo geral, amorfos, pelo que pergunto: Estaremos condenados a indigência e ao fracasso como povo soberano? Teremos futuro como país? Seremos capazes de mudar de rumo e sentido?

PS. Para ler na íntegra o artigo de JPP, ver http://www.abrupto.blogspot.com/

8 comments:

António Campos Leal said...

Para mim, o mais estranho é o sentimento que perpassa pela opinião pública, e alguns seres pensantes para isso contribuem, de que a questão é de... massa cinzenta. Aonde os que tomando decisões se aproveitaram da opção eleitoral e ao longo de mais de vinte anos se dedicaram a traçar o destino de uma nação para o precipício? Estranho todo um leque de doutos membros de academias, pensadores vários, investidores no desenvolvimento, analistas imensos e opinativos especializados que durante mais de duas épocas teceram louas ao avanço da economia portuguesa, ao desenvolvimento da nação. Estariam cá? Terão lido os dados do INE. Teriam acompanhado os quadros de avaliação do Banco de Portugal? Terão acompanhado o alerta dos "medrosos"? Não por certo que não. Afinal a sabedoria e o conhecimento está muitas vezes por baixo da capa do interesse pessoal ou de grupo.
E, como reza uma bem-aventurança da santa madre igreja, "bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o reino dos céus", a que acrescento "azar aos outros que têm o inferno na terra".

Pedro Moura said...

Pergunto-me se - ainda que deva confessar a minha ignorância sobre muitos dos seus aspectos - se se repetirá também a morosa recuperação que se verificou depois do Ultimato.
Não pretendo ter a ideia de uma solução, mas pertencendo a uma geração imediatamente abaixo/a seguir daquela que agora ocupa os cargos mais visíveis da "classe" política, pergunto-me se de facto haverá pessoas com novos modos de pensar, agir e relacionar as esferas sobre as quais importa agir e pensar, "distraídos" que estamos com coisas que tanto são da cultura popular televisiva, como de falsos discursos de resistência e contestatários (dá vontade de rir ou chorar?) como as dos Homens da Luta, às demagogias de direita e esquerda, e os fait-divers de casamentos reais, futebol e romances de pivots...
Abraços,
Pedro

Assim Falava Zaratustra said...

Pena que o "atestado público de incompetência que foi passado a Portugal" e a quem nos governou nos últimos anos não tenha sido passado pelo povo português. Continuamos a andar distraídos, esperando que nos venham salvar. Ainda bem que vais concordando comigo: partidos políticos, gestores, economistas (sempre cheios de soluções para o país, mas incapazes quando estão no governo, e passaram quase todos por lá), sindicalistas, funcionários públicos, académicos, ou seja, a elite portuguesa sempre se revelou incapaz de fazer as reformas necessárias, preferindo parasitar o Estado.

Mas não concordo quando dizes que "alguns iluminados, do BCE, do FMI e da UE aterram aqui, recolhem uns dados, durante um mês, e depois, com a maior sobranceria, explicam como se deve governar um país, a troco da ajuda financeira." E não concordo por uma razão simples: então se nos vão emprestar dinheiro esperavas o quê? Que nos dessem o dinheiro e "agora façam o que quiserem com ele". Não é uma atitude sobranceira, é uma atitude de quem sabe «o que a casa gasta», de quem percebeu que o Estado alimenta as elites recusando qualquer reforma digna desse nome.

Claro está que os portugueses encararam com naturalidade todo este processo. Essencialmente por três razões: a 1.ª porque sabem que não há dinheiro e, como tal, não há alternativas (não há palhaços, utilizando uma expressão popular); a 2.ª porque é a terceira vez em 34 anos que o FMI actua em Portugal (1977, 1983, 2011). Começamos a criar alguma habituação e o ser humano, como sabes, é um animal de hábitos; a 3.ª, porque já nos habituámos a estar de mão estendida, confiando que a Europa nos vá resolver os problemas.

E lá vamos, cantando e rindo, com a cabeça entre as orelhas. O resto, como diria o professor Eduardo Catroga, "são pintelhos".

Álvaro Costa de Matos said...

Caro António,

Nem mais; o interesse pessoal (ou mesmo corporativo) prevaleceu em detrimento duma ideia geral, estratégica, com finalidade, para, duma vez por todas, colocar este país na vanguarda do desenvolvimento sustentável. Abraço Amigo,

Álvaro Costa de Matos said...

Caro Pedro,

Obrigado pelo comentário. Primeiro, não duvido que a recuperação seja lenta, até demasiado lenta, e se calhar, para mal dos nossos pecados, pouco estruturada e sólida; segundo, quanto à existência, e disponibilidade, de pessoas "com novos modos de pensar": elas existem, andam por aí, mas infelizmente não são "muito bem vindas", ostracizadas quase sempre pelas clientelas dos partidos políticos; mas esta pode ser uma excelente, e única, oportunidade para ir buscá-las, a bem da pátria. Abraço Amigo,

Álvaro Costa de Matos said...

Caro Pedro,

Julgo que as coisas deviam ter sido feitas de outra maneira, afinal de contas ainda somos, embora cada vez menos, um estado soberano; procurei ir ao âmago da coisa; é claro que o que se passou era previsível, mas qual é a legitimidade democrática daqueles burocratas? Imagina uma situação idêntica em França, ou na Grã-Bretanha. Estás a ver os franceses, ou os ingleses, a aceitarem que uns funcionários públicos internacionais lhes explicassem como é que se governa um país?! Cairia o carmo e a trindade... Lá a coisa não seria tratada com naturalidade, não duvides. Mas cá, com muita pena minha, foi, e não devia ter sido; até porque também contribuímos para o FMI, para o BCE e para a UE, importa não esquecer este detalhe. Eu, no lugar dos políticos, das duas uma: ou enfiava a cabeça na areia, de vergonha; ou não permitiria que tal acontecesse: Muito bem, fizeram um memorando, mas esta era a função deles; quanto à sua apresentação pública, entrevistas, e afins, que extravassam as suas funções e competências, a coisa deveria ter sido diferente, pois, repito, não têm qualquer legitimidade democrática para o fazer. Eu, como português, senti-me muito vexado nesse triste dia de 5 de Maio de 2011. Abraço Amigo,

Assim Falava Zaratustra said...

Caro amigo,

A nossa soberania foi há muito cerceada, como sabes. Malhas que o império tece. A integração na União e o caminho percorrido (vulgo tratados europeus) trouxe-nos a este ponto. Temos que viver com esse facto. Não faz sentido lamentarmo-nos de um caminho há muito traçado e com o qual concordámos. Ainda somos um Estado Soberano, é verdade, mas a contas com uma dívida soberana elevadíssima que não conseguimos pagar. Eu entendo as lágrimas de indignação deste súbdito patriotismo, mas deviam ter pensado nisso antes. Não há que matar o mensageiro, mesmo que traga más notícias.

Quanto à legitimidade democrática "daqueles burocratas", de facto não deviam ter falado, deveria ter sido a Comissão a fazê-lo, por exemplo. Mas pusemo-nos a jeito. E em França, ou na Grã-Bretanha esta situação não aconteceria porque, apesar de tudo, lá se vão governando. Não faz sentido comparar o incomparável.

Mas, se tal acontecesse, responderiam com indignação. Como é natural. No nosso caso é diferente. Como referi, adoptámos a postura de assobiar para o lado e aceitar de bom grado que venham do exterior resolver os nossos problemas. O que não é o caso dos exemplos que dás. Mas é necessário dizer que este comportamento dos portugueses tem razão de ser. Habituámo-nos a viver dos subsídios europeus, como nos tínhamos habituado a viver das especiarias da Índia e do ouro do Brasil. Apostámos no consumo como factor de crescimento e facilitámos o acesso ao crédito. O conceito de poupança desapareceu do vocabulário. A UE subsidiou o abate da nossa frota pesqueira. Depois passou a subsidiar os agricultores para não produzirem. Para não faltar nada à festa acabámos com a indústria e, hoje, podemos dizer que os sectores primário e secundário fazem parte do passado, exceptuando o vinho e a cortiça (sempre os mesmos exemplos). Vivemos do sector dos serviços, nada mais. Não temos capacidade de investimento para desenvolver a indústria. Mas tudo isto aconteceu com o beneplácito da nossa classe política. E, porque não acrescentar, com a anuência da sociedade em geral, satisfeita por ter a maior densidade de centros comerciais da Europa ao mesmo tempo que a nossa cintura industrial morria. Talvez um pouco pesarosa por assistir à desertificação dos campos, mas a pensar na viagem a Punta Cana, porque, afinal de contas, paga-se com crédito e até é Agosto.

Como tu, também eu enfiava a cabeça na areia, de vergonha, se estivesse no lugar dos políticos deste país. Mas, lamento dizer-te, vergonha é coisa que não abunda por terras lusitanas. Ainda agora estava a ler uma entrevista do professor Eduardo Catroga. Tem duas passagens que podem ser mencionadas: refere que o ministro Jorge Lacão lhe pediu (a Eduardo Catroga) para fingir que o acordo não estava assinado, que só estava rubricado, alegando que era para prestigiar o Parlamento. Logo aqui se percebe o raciocínio controvertido dos nossos políticos que acham que mentir aos portugueses pode ser prestigiante; refere, ainda, que em conversa com o ex-ministro Manuel Pinho, a propósito da perda de estatuto da Caixa, este lhe disse “Dizem que vou para a CGD, mas aquilo só dá 350 mil euros e o carro também não é grande coisa”. São estes os políticos que temos. E desta gente tenho vergonha. Mas, apesar de tudo, não me senti vexado nesse triste dia de 5 de Maio de 2011. Não sei porquê… Talvez também já não tenha vergonha nenhuma.

António Campos Leal said...

O que mais estranho é a capacidade de análise demonstrada pelos comentadores.Inteligência opinativa. Orientação critica. Mas, como diria o brasileiro, cadê a realidade da orientação critica? Ou tal qual a visão de alguns interventores políticos só encontram linhas de análise na questão matemática, na razão financeira, na orientação económica. Não caros senhores para uma análise coerente é preciso tocar no busílis da questão. Os interesses que orientam a intervenção e actuação da maioria dos decisores do meu País não correspondem aos interesses da maioria dos portugueses. Aí vem-me à memória um velha expressão dos manuais de Formação Política. Luta de Classes. Conhecem. Sabem, ela ainda não acabou.