Tuesday, November 6, 2007

Recortes de Imprensa: "Guerra", de Eduardo Cintra Torres

“Durante anos, o projecto de Joaquim Furtado sobre a guerra em África levantou reservas a responsáveis da RTP. Hábito é trabalhar-se em cima do joelho e não demorar anos num trabalho de investigação e realização. Ele persistiu e o seu estatuto sénior permitiu-lhe continuar e chegar a bom porto. Valeu a pena. Guerra despertou desde o primeiro episódio merecidos elogios e interesse público (RTP1, terças-feiras). Um lustro de trabalho favoreceu a qualidade da série. São precisos anos para fazer centenas de entrevistas em vários países, ver e ouvir centenas de horas em arquivos, organizar material, estudar, escolher e realizar, em especial se a tarefa é, como neste caso, quase solitária. Para abordar a guerra de África, tema ainda difícil e virgem em televisão, Furtado escolheu a via adequada: a do jornalismo de referência, da reportagem em grande profundidade, raramente vista na TV portuguesa. Obra de autor, Guerra é a obra dum autor jornalista. O próprio título, com suas três variantes – guerra colonial, do ultramar, de libertação –, indica a obsessão pela objectividade jornalística que os primeiros episódios confirmam. Essa é a primeira vitória da série: ela honra o jornalismo português de forma exemplar. Honra o jornalismo, tout court, pois mostra a importância vital do jornalismo na sociedade democrática, o jornalismo verdadeiro, equidistante, independente, aberto, de investigação, corajoso na revelação da verdade. Só a verdade pode sarar as feridas abertas pelos pesadelos duma guerra. Os primeiros quatro episódios deram alternadamente a voz a guerrilheiros e outros angolanos, militares, políticos e civis portugueses envolvidos nos eventos de Angola em 1961. Além do excelente uso de diversos arquivos, da sincronia do áudio da Emissora Nacional aos filmes da RTP, os episódios desenterram como nunca antes em TV uma narrativa sobre os primeiros oito meses da guerra em Angola. Pessoas envolvidas, incluindo em atrocidades, falaram com grande abertura à verdade. Ficou-se a saber que Salazar ignorou um aviso sobre o ataque da UPA, o que mostra a hipocrisia política de abandonar os portugueses em Angola e só agir depois. Fez o mesmo na Índia e quase o fez em Macau em 66, tendo ponderado abandonar portugueses e macaenses aos Guardas Vermelhos. A série revelou também a inicial resposta terrorista dos portugueses aos ataques terroristas da UPA. O trabalho em profundidade permitiu detalhar para compreender. Os recursos estilísticos da série são simples. Entrevistas sem cenário; depoimentos com cortes à vista, como nas notícias de jornal; narração factual, escorreita e correcta, como no jornalismo; mapas de Angola para acompanhar os acontecimentos, como num jornal; ausência de floreados visuais e musicais, só narrativa em pele e osso; uso de imagens de arquivo no sítio certo da narrativa; onde faltam, desenharam-se, como nas reconstituições de cenas de tribunal – outro indício do modelo jornalístico. Furtado optou nos primeiros episódios por só apresentar depoimentos dos que fizeram, sofreram ou estiveram envolvidos na guerra. Ficaram de fora politólogos e historiadores. A série adquire assim maior capacidade narrativa e de envolvimento do espectador, sem perder o fio explicativo. A narração off é demasiado detalhada, pois caber-lhe-ia a ligação dos factos «por cima», deixando os pormenores aos entrevistados. Faltou contextualização, mas foi uma opção editorial. Falhas menores. O resultado não é uma análise histórica, mas um documento de história oral e visual da guerra, insubstituível, ao contrário de outros programas do género, por compêndios ou análises escritas. A televisão no seu melhor como documento, como testemunho.” (Público, 3/XI/2007)

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